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Channel: TRIP // Especial
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Humor vintage

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Saiba mais sobre os medalhões da comédia que inspiraram o ensaio de moda da Trip #221


Siga o mestre

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Buster Keaton, Oscarito, Grande Otelo, Mazzaropi... Os grandes nomes do humor clássico viram referência de estilo

Styling: Gi Macedo
Coordenação Geral: Adriana Verani
Produção Editorial: Bernardo da Mata
Produtora de Moda: Leila Pigatto
Modelo: Cícero Lopes (Major Model Brasil)
Make&Hair: Paulo Renso
Assistentes de Foto: Caio Prado e Janina McQuoid
Assistente de Moda: Renan Salvetti

Carioca sangue bom

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O cara imita Jô Soares, Amaury Jr., Papa Francisco, Dilma Rousseff. E faz isso tão bem que alguns dos próprios alvos acham graça. Com vocês, o gênio do Pânico - desta vez, sem disfarces

Márvio Lúcio está resfriado. Ou tem uma virose, que é o diagnóstico padrão para os mal-estares modernos. Provavelmente pegou da filha de 1 ano, que passou madrugada dessas vomitando até às cinco da manhã. “Não tô legal”, ele admite. Mas nem por isso deixa de entrar na van para uma bateria de entrevistas com revista, rádio e TV Trip, seguidas de sessão de fotos. Durante a longa tarde, entre um cigarro e outro, fala empolgadamente de política, carreira, família, tira fotos com jornalistas e produtores, distribui sorrisos, bate papo com quem quiser papo.

É fácil ser levado pelo carisma que transformou Márvio em um dos humoristas mais conhecidos do Brasil. Nascido em Niterói e criado em São Gonçalo, alguns diriam que ele não pode ser chamado de carioca; o gentílico correto seria “fluminense”. Mas a alcunha ficou e hoje ele é, provavelmente, o fluminense mais carioca do Brasil. Márvio Lúcio, o Carioca, com seu sotaque cantado e humor naturalmente malandro, honra o apelido.

Até quem não assiste ao Pânico na Band, de cujo elenco o humorista faz parte desde os tempos do rádio, reconhece o Carioca por alguma de suas imitações hilárias. Jô Suado, Boris Casoy, Amaury Dumbo e Zeca Tamagro são alguns dos tipos que faz no programa e que o tornaram conhecido de ponta a ponta no país. Classificado por Danilo Gentili como o maior humorista e imitador do Brasil hoje, elogiado por seus imitados – Lulu Santos, um deles, viu o humorista na plateia de um show e agradeceu com uma canção –, Carioca vive seu melhor momento. Seu talento para os tipos ajuda a erguer o Ibope do Pânico, o maior da Band, e gera milhares de visualizações e comentários no YouTube, a maior parte vinda do público jovem. “Eu quero é tocar o terror”, ele solta, durante a sessão de fotos para esta edição. Apesar da ameaça, o niteroiense de 37 anos não quer ofender ninguém com suas caricaturas. Seu principal parceiro nos quadros do Pânico é Eduardo Sterblitch, que encarnava o famoso Freddie Mercury Prateado e com quem compartilha a veia nonsense.

 

“A comédia anda sempre no limite, se arrisca, e às vezes pode errar ou sair do que as pessoas estavam preparadas” para aceitar

 

Seu humor é menos polêmico do que aquele praticado por grande parte da trupe do Pânico. O programa sofre críticas constantes e é acusado de apelação. Carioca defende a “família Pânico”, como eles se denominam. “A comédia anda sempre no limite, se arrisca, e às vezes pode errar ou sair do que as pessoas estavam preparadas para aceitar. Mas sou a favor da total liberdade de expressão. Cada um fala o que quiser e o mercado absorve ou não”, justifica. Para ele, no momento existe no país uma “cruzada moral imbecil” que atrapalha.

Bate-bate

Dois casos recentes foram emblemáticos nesse teste de fronteiras. Primeiro, desistiu de Jô Suado, depois de ser esnobado em rede nacional por Jô Soares três vezes. Depois, abortou Edir Maiscedo, tentativa de imitar o bispo Edir Macedo. No primeiro caso, ficou magoado por não ter a bênção de um ídolo. No segundo, recuou por medo da gritaria. “É complicado brincar com religião e não quero polêmica.” Quando o personagem caiu, os evangélicos comemoraram na internet. Carioca não se importa, apesar do tempo que investe em cada tipo: sente a necessidade de entrar de cabeça nos personagens e começa observando a forma como a pessoa a ser imitada se comunica. “Olho mão, olhar, gestual, boca. O corpo fala. A voz é o mais difícil. Penso que tenho o mesmo trabalho de um cartunista, de notar detalhes; mas sou um cartunista da vida real. E não quero ser mais um. Quero oferecer algo de arte.”

Leu a autobiografia de Edir Macedo para entender o personagem e levou quatro meses para criar seu Boris Casoy. “Antes de fazer rir, quero que você se encante com minha proposta, o tipo, o jeito, a fala. É uma sedução, mesmo.” Com seu “Jornal do Boris”, ganhou até o próprio Casoy. Além de dar sua bênção, o jornalista fez uma espirituosa participação na bancada do “Jornal do Pânico” e, numa cena que Emilio Surita classifica como “uma das mais surreais da TV brasileira”, andou de carrinho de bate-bate com seu imitador. O personagem não existe mais. Quem lamenta é o próprio Casoy: “Virei um cara popular por causa da imitação. Achavam que eu era sisudo, agora me acham simpático. Até as crianças pedem para eu dar meu ‘boa noite’ agora.” Outro imitado que aprovou a “homenagem” foi o apresentador Amaury Jr. “As pessoas achavam que eu me irritaria porque ele fazia a caricatura com alta lubrificação etílica”, conta. “Mas eu achava o máximo. Por mim, ele teria o próprio programa.”

 

Ele anda com quatro feias dentaduras de plástico para poder imitar a qualquer hora Ronaldo Fenômeno, Dilma ou Lobão

 

Márvio Lúcio está com saudade do Rio de Janeiro, que trocou por São Paulo há 15 anos. Sente falta de ver o Pão de Açúcar quando vai para o trabalho, de mirar “o verde, o mar, o azul”. Dirigindo pelo caos do trânsito paulistano, sintoniza rádios da Cidade Maravilhosa só para ouvir o ritmo. Antes de virar o Carioca do Pânico, foi um esforçado produtor da rádio Joven Pan, no Rio. Era 1996. Quando não estava distribuindo adesivos promocionais da rádio nos semáforos, imprimia suas ideias, piadas e roteiros na Epson matricial da rádio e enviava para o seu programa preferido, um tal de Pânico, que a Jovem Pan de São Paulo transmitia para o país inteiro. Emilio Surita, o apresentador, lia as contribuições no ar e agradecia. “Valeu, Márvio, que sempre manda coisas boas lá do Rio.” Dois anos depois, foi chamado para trabalhar no programa radiofônico, que iria para a TV em 2003. E assim tudo começou.

Fe Pinheiro

Márvio Lúcio, o Carioca: gênio da imitação do Pânico na TV

Márvio Lúcio, o Carioca: gênio da imitação do Pânico na TV

Para ser justo, começou muito antes. Aos 5 anos de idade, montado de mulher pela irmã, Márvio fazia apresentações para tios, avós, “a velharada que ia lá em casa. Eles adoravam e eu passava o chapéu. Foi aí que descobri que dá pra ganhar dinheiro com essa merda”. Essa merda, no caso, é a nada fácil tarefa de conquistar o público com imitações. A primeira foi de Leonel Brizola, porque Márvio é louco por política. Sonhava ser congressista, quem sabe presidente da república. A primeira viagem a Brasília, em 1994, foi para assessorar um candidato a deputado na convenção que escolheria o presidenciável do PMDB. “Fui tentar, mas na primeira já desisti, cara. Senti que todo o esquema é corrupto”, lembra, com certa tristeza. Para piorar a impressão, alguém embolsou a grana que pagaria a comida da comitiva, e Márvio teve de bancar o almoço de muita gente. Nunca mais pensou em ser político, mas continuou acompanhando a arena: lê jornais todos os dias e sabe quem é quem no jogo de poder.

Entertainer

Depois do caudilho gaúcho vieram imitações de Gil Gomes, Raul Gil, Silvio Luiz, Muricy Ramalho, Caetano Veloso, Serginho Groisman, Biafra. Ele diz que a criação “solta”, no bairro de Boaçu, São Gonçalo, potencializou suas habilidades. A família é de gozadores, e ainda hoje fazem pegadinhas uns com os outros. O pai tinha fitas cassete com piadas do Costinha, que Márvio escutava escondido no som do carro. “Aquele monte de sacanagem, palavrão, foi uma escola”, ri, lembrando do mestre.

Ele se diz um entertainer – segundo o dicionário Michaelis, “pessoa que faz apresentações, profissionalmente, para a diversão dos outros”. Mas quem o conhece sabe que é, ele mesmo, um entretenimento full time. Sorrisos, tiradas e imitações saltam a todo momento de seu vasto repertório. Anda com quatro feias dentaduras de plástico para poder imitar a qualquer hora Ronaldo Fenômeno, Dilma, Lobão ou outro famoso. Imita amigos também, como seu patrão, Tutinha, dono da Jovem Pan, seu colega de elenco Bola e o maquiador do Pânico, de quem faz propaganda para a produção da Trip. Entende o sucesso, mas não parece muito interessado no estrelato. É aquele vizinho engraçado da periferia que chama a atenção nos churrascos pelo bom humor. Os nascidos no Rio que se adaptem: o fluminense Márvio Lúcio é um carioca sangue bom.

Caracterizador: Anderson Montes (Dinho)/ Figurino: Euller Sampaio

Tá rindo de quê?

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ariovaldo/cpdoc jb

Chico Anysio faz show em São Paulo, em 1971

Chico Anysio faz show em São Paulo, em 1971

Pobretões estropiados, presidentes militares, galãs de novela, famílias arruinadas, casais neuróticos, gays, celebridades: ao longo dos anos, o que as vítimas preferenciais do humor da TV brasileira revelam sobre a nossa sociedade

Num país que perde tudo, menos a piada – basta lembrar quantas horas demoramos para começar a rir de grandes ídolos mortos, como Tim Maia e Ayrton Senna –, o que os maiores sucessos do humor de massa nos dizem sobre o Brasil? Da era de ouro do humor de tipos de Chico Anysio e Jô Soares à recente explosão da graça cáustica do grupo independente Porta dos Fundos – passando por formatos cuja longevidade desafia a lógica, como A grande família e A praça é nossa –, em quem temos adorado ver nossos humoristas baterem?

Os pobres e/ou estropiados, como o Bronco, de Ronald Golias, sempre tiveram nossa preferência. Nos primeiros anos da TV brasileira, o personagem dividia com a Velha Surda de A praça (que nasceu A Praça da alegria) a tarefa de entreter a audiência, enquanto o país afundava em atos institucionais cavernosos.

Se não tiveram graça nenhuma, os anos de regime militar ao menos alimentaram pérolas do humor. Entre os tipos que Jô e Chico encarnavam nos anos 70 e 80, sobressaíam-se os que parodiavam políticos em evidência ou faziam alusões veladas ao regime. Anysio criou Salomé, a velhinha gaúcha que passava pitos no então presidente João Figueiredo; Jô, o milico que acordava de um coma com Sarney na presidência (“Me tira o tubo!”) e Sebá, exilado político que vociferava, ao ouvir notícias do Brasil: “Você não quer que eu volte!”. Isso tudo em um tempo em que a Censura era uma ameaça; um dos grandes sucessos do hunorista, o Capitão Gay, quase morreu antes de nascer: havia um coronel em Brasília que tinha Gay no nome, e Jô temia irritá-lo com o personagem.

“Apolooooonio, É você, Apolônio?”
Rony Rios, a Velha Surda 
A Praça da Alegria/A Praça É Nossa
(TV Paulista/Globo, 1957)

Rir da ditadura, eventualmente, cansaria. A virada para os anos 1980 e o processo de abertura política trazem à baila novas vítimas e novas formas de rir delas. TV Pirata (1988) batia em ricos e remediados, mas tinha como principal cristo a própria Rede Globo e sua onipresença no imaginário do país; Casseta & Planeta (1992), de verve mais política, inaugurou o “jornalismo mentira, humorismo verdade”. Se o primeiro deriva do teatro besteirol, o segundo é filho do tablóide underground Planeta Diário (1984), que atirava para todo lado, com manchetes como “Wilza Carla explode na Terça-Feira Gorda” e “Sobral mata a cobra e mostra o pinto”.

“Jô e Chico faziam humor de resistência. A Casseta e o Planeta nasceram para fazer um contraponto a isso em um período de redemocratização”, diz Marcelo Madureira.

Ricos pobres e pobres ricos

Nos anos 90, em plena redemocratização, são as mudanças no topo da sociedade brasileira que alimentam o maior sucesso humorístico da TV. Uma família de ricos submergentes, produto acabado da era de incertezas econômicas dos governos pré-real, é a vítima de eleição de Sai de baixo, que turbinou a eterna sitcom familiar com uma boa dose de improviso – era gravado de um jeito algo retrô, ao vivo e com plateia. “A família classe A falida era engraçada na época, assim como hoje a gente ri da ascensão da classe C”, diz a atriz Marisa Orth, que fazia a descerebrada Magda no humorístico.

'Ô da poltrona'
Renato Aragão em Os Trapalhões
(Globo, 1977-1995)

Prova viva da própria fala, ela encabeça o núcleo cômico da novela Sangue bom, que acaba de estrear na Globo, no papel da filha de um feirante que enriqueceu. Mas nem por isso acredita em grandes mudanças no humor feito na TV brasileira. “Sai de baixo era commedia dell’arte, um gênero do século 16. A árvore de Natal é a mesma. O que muda são os enfeites”, ri.

Coisas de casal

Na virada do milênio, em clima de democracia, estabilidade econômica e “liberdades individuais” garantidas, o que desponta como motivo de riso é, mais que a política ou a economia, a neurose conjugal, praga que une ricos, pobres e classe média numa identificação em larga escala. Os normais (2001), sitcom modernizada, promove uma mudança sutil no foco da graça. “Há dois tipos de humor. O que ri dos outros e o que ri de si mesmo. Os normais era do segundo tipo”, diz Alexandre Machado, cocriador, com Fernanda Young, da série e de O dentista mascarado, que marca a estreia de Marcelo Adnet na Globo. 

Bater nos outros, contudo, não sai de moda. Longe disso. Pânico, sucesso radiofônico que chega à TV em 2003, aposta num pastiche poderoso que ressuscita o humor de tipos, abrasileira as tiradas nojentas do programa americano Jackass e manda chumbo grosso contra nosso deslumbramento diante das celebridades. “Brincamos muito com esse culto aos famosos e com a ideia de que o sucesso ($$) transforma o ridículo em respeitável”, diz Emílio Surita, cabeça do programa.

"Eu faço a cabeça do João Batista ou não me chamo Salomé"
Chico Anysio em Chico Anysio Show
(Globo, 1982-1990)

Sucesso de audiência, Pânico desafia não só o bom gosto, mas o formato humorístico tradicional. “Estamos no horário mais competitivo da TV e temos obrigação de ser populares, mas nem por isso deixamos de brincar com a percepção do telespectador. Misturamos realidade e ficção, personagens e gente real. Temos um time irrequieto e sem medo de errar”, diz Surita. “Eu, particularmente, não gosto, mas acho que programas como o Pânico ajudam no processo de amadurecimento do público brasileiro em relação à comédia televisiva”, acredita Alexandre Machado. “Eu quero mais é que eles explodam todos os limites.”

Adir Mera/Ag. O Globo

'CANSEI!' - Jô Soares como Capitão Gay em Viva o Gordo (Globo, 1981-1987)

Censura branca

O panorama do humor televisivo atual mostra que ainda há público para os tipos caricatos de Zorra total e A praça é nossa, o humor familiar de A grande família, e novidades como o CQC (2008), formato argentino que aposta em constranger políticos, religiosos e artistas. Mesmo assim, sugere uma certa crise de criatividade na TV, atribuída por muitos humoristas ao que consideram uma nova forma de censura: a moral do politicamente correto, reforçada por leis como a 9.504, que proíbe sátiras a candidatos em época eleitoral, e pela ameaça de processos por ofensa.

A campanha contra agressões (real ou supostamente) cometidas por humoristas coincide com a organização da sociedade civil e o avanço das defesa dos direitos das minorias, mas sugere exageros de parte a parte.

“Essa patrulha do moralismo também tem fins lucrativos. Hoje fundar uma ONG em defesa dos anões caolhos gera dinheiro e é preciso justificar esse dinheiro. Essas representações sociais são muitas vezes questionáveis, veem preconceito em tudo”, diz Madureira.

“A criatividade humorística foi manietada pela autocensura do politicamente correto. A comédia de hoje parece algodão-doce”, diz Elias Thomé Saliba, professor de teoria da história na USP e autor de Raízes do riso (Cia. das Letras).

O surgimento de uma geração de comediantes “de pé” e a disseminação dos esquetes caseiros em vídeo, viralizados na internet, estão contribuindo para renovar o humor brasileiro – e pôr mais lenha nessa discussão sem fim. Um dos comediantes revelados pelo stand-up, Danilo Gentili foi acusado de crime de racismo pelo Ministério Público por uma piada que rimava negro e macaco. “Todo mundo fala de Chico Anysio e Jô Soares como se fossem santos, nesse sentido”, lamenta Gentili. “Mas eles faziam piadas sexistas, zoando homossexuais, raças, credos. O mundo faz piada disso.”

"Quem eu pensei pra fazer Deus é Seu Jorge"
Fabio Porchat em Brainstorm, esquete de Porta dos Fundos

O que distingue graça e preconceito, na opinião de quem faz humor? “Quando a piada é boa, faz rir automaticamente, não existe agressividade”, acredita Madureira. Paulo Gustavo, criador do monólogo Hiperativo, ressalva. “O melhor humor é o que faz rir e diz algo; o pior é o que apela para grosserias e humilhações.”

O humorista negro Marcelo Marrom vai mais longe. De peruca loura, ele arranca gargalhadas com um monólogo teatral que tem como alvo o negro. “Agora, em vez de me chamar de negão, o pessoal grita na rua: ‘Afrodescendente só faz merda’.” Transformar o que vive em piada é seu trabalho, afinal, justifica-se. “Nossa cabeça mudou pra pior. Chamar o negro de afrodescendente não melhora sua vida”, diz. “O preconceito não está na nomenclatura, mas no coração das pessoas. Posso usar termos como ‘crioulo’ sendo e não sendo preconceituoso. É questão de inflexão, momento, tom. É ignorância pensar que tudo é preconceito.”

Tempos velozes

Há luz no fim desse túnel? Sim, diz Alexandre Machado. “O politicamente correto é uma questão superada em outros países. Na TV americana, há um renascimento do palavrão, do mau gosto, da comédia maluca. Girls é uma série de humor que testa limites de uma forma impensável há dez anos. As pessoas aparecem peladas o tempo todo, transando, exatamente como são.”

UH/Folhapress

'Ô Cride!' - Ronald Golias em Família Trapo (Record, 1967-1971)

Menos animado, Madureira acha que o estado do humor reflete “uma certa regressão da sociedade”. “A TV aberta não comporta mais um conteúdo iconoclasta, arrojado. E quase não se fala de política no humor. Nossa sociedade reclama, mas não se engaja. De forma grosseira, há uma alienação”, opina.

Fã de vários dos comediantes que surgiram na última década – Paulo Gustavo, Marcelo Adnet, Katiuisca e, em especial, Fabio Porchat e Gregório Duvivier, dois dos criadores do sucesso virtual Porta dos Fundos –, a atriz Regina Casé discorda. “Tem um episódio deles que mostra toda a cadeia alimentar brasileira: ladrão, favela, delegado, pastor”, diz, referindo-se ao esquete em que um motorista de táxi é roubado por um traficante, que é achacado por um policial, que é afanado por um deputado, que, afinal, perde para o taxista, que se diz pastor evangélico e cobra o dízimo. “Acho isso altamente politizado”, ela diz. “É uma crítica contundente a um momento que a gente está vivendo.”

Desgraças brasileiras e males contemporâneos, como o tédio da vida corporativa e os péssimos serviços oferecidos pelas empresas das quais dependemos no dia a dia – telefônicas, por exemplo –, estão entre os temas do Porta dos Fundos. Para Fabio Porchat, um de seus criadores, os temas não são o ponto, mas o ritmo. “O ritmo das pessoas muda e as piadas têm de mudar pra acompanhar. Hoje estamos em um ritmo mais acelerado. Daí o formato do Porta dos Fundos, com esquetes de poucos minutos e tiradas rápidas. Não mudamos nada. Seguimos o modelo de esquetes de TV pirata, Monty Python. O que aconteceu foi que acertamos no timing.”

Por que amamos tanto o que não muda nunca?

Por: Eugênio Bucci

As crianças, antes de dormir, gostam de ouvir histórias. De preferência, as mesmas. Sob as cobertas, pedem aos pais que leiam os mesmos livrinhos, já gastos, puídos, cujos textos elas passam a decorar. E então gostam ainda mais daquelas palavras, aquelas mesmas palavras repetidas.

Depois as crianças crescem e seguem em busca de narrativas repetidas para seus tortuosos itinerários eróticos. As aventuras sexuais de uns e outros podem trazer novidades retumbantes para uns e outros, mas, se elas forem mesmo um filme quente, as legendas serão quase sempre iguais, com poucas variações.

O prazer da gente busca aninhar-se no conhecido, no familiar. O prazer se compraz não em conhecer, mas em reconhecer. A “vítima” do sedutor mira o estranho bem nos olhos e diz: nós somos íntimos desde tempos imemoriais. Não foi por outra razão que a indústria do cinema se organizou, disciplinadamente, em gêneros fixos. Os filmes são “devices” para entregar aos clientes o tipo exato de emoção que eles querem comprar. Os outros ramos do entretenimento também funcionam assim. Todo jazz é igual ao jazz, todo samba é idêntico a si mesmo, todo sertanejo universitário cacareja em dueto previsível. Aí o freguês compra, se reconhece e goza.

TV Globo/Zé Paulo Cardeal

'Cala a boca, Magda' - Miguel Falabella e Marisa Orth em Sai de baixo (Globo, 1996-2002)

Por que a nação prefere ver o futebol na Globo se nos outros canais a imagem é potencialmente igual? Simples: porque a voz do Galvão Bueno, que muita gente xinga, faz com que todo mundo se sinta em casa. Faz com que todos se reconheçam em casa. Que o tal Galvão seja o maior salário da TV brasileira (ou um dos maiores, vá lá) não surpreende. É ele que segura a audiência. Não por inovar, mas por ser igual, conhecido, já sabido.

Também com as piadas é assim: a gente adora rir da mesma piada. É mais confortável do que rir de piada nova – coisa mais chata, mais trabalhosa. Rir da mesma piada é mais prazeroso. Só o que se pede é que haja uma pitada de invenção, discreta, mínima. O gosto verdadeiro é o do mesmo – exatamente como na gastronomia.

No meio da aula, anuncia: “Agora eu vou contar uma piada”. Imediatamente, a classe inteira começou a rir, antes mesmo da piada. Os alunos se sentiram autorizados a rir – e isso, apenas isso, fez com que rissem com muito gosto. Foi uma boa risada coletiva, e quem ri coletivamente se sente mais em casa ainda, mesmo que seja na escola.

Para que servem as risadas gravadas ao fundo da trilha sonora das sitcoms? Elas servem para autorizar o riso. Quem ri coletivamente cumpre uma ordem –
e adora. Concorda, aceita e adora. A compensação para quem ri em tropa é sentirse pertencente.

Ah, sim, dizem que o humor liberta. Francamente, há piadas melhores. Só o que liberta é a dissonância, a dissidência. Na indústria do entretenimento, o humor apenas compacta a audiência – que, em lugar de marchar unida, gargalha unida. E se sente de volta à casa materna, à eterna, sempre aberta casa materna, sempre à espera dos que se dispersaram, perderam-se no mundo, mas um dia retornarão ao aconchego final. Um útero, um túmulo.

Por isso, o humor que vence na televisão é o que tem em si a capacidade de repetir-se ad infinitum. O Zé Bonitinho é o personagem mais importante dos humorísticos televisivos. A Praça é nossa é uma capitania hereditária, que cruza os tempos e as megatransformações tecnológicas sem dar sinal de esmaecimento. Essas coisas são o nosso cadáver de Lênin, aquilo que não muda para que tudo o mais se esboroe à vontade. As mesmas piadas de sempre, as mais cadavéricas, acolhem os infelizes na sua morada idílica.

Diante disso, não deveria intrigar a ninguém o fato de que os humorísticos mais ressequidos são aquilo que a televisão brasileira nos oferece de mais novo. E de que os humoristas mais novos, a um golpe caprichoso do tempo acelerado, acabem se convertendo no que temos de mais ressequido.

As crianças, antes de dormir, pedem que lhes contem uma historinha conhecida, assim como os velhos, antes de morrer, só desejam rir um pouco de uma piada que, segundo creem, não envelheceu.

Casanova tupiniquim

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Nosso Repórter Excepcional vai em busca do criador de Zé Bonitinho na esperança de aprender com o mestre a arte de fazer sucesso com as mulheres

Ao longo da minha vida, gurus, escritores, divas, livres-pensadores e figuras atípicas em geral impregnaram o meu modo de ser, pensar e anarquizar. São os meus heróis. No universo do humor, desde a infância acompanhava gargalhando e imitando com o meu pai tudo aquilo que mestres como Jerry Lewis, Chico Anysio, Os Três Patetas, Charles Chaplin, Monty Python, Jô Soares, Golias, Catifunda e Os Trapalhões faziam.

Sempre fui adepto do humor, da gozação, da paródia e do esculacho em geral. No mais recôndito esconderijo da minha psique, um personagem esteve presente nas minhas brincadeiras e palhaçadas diárias. Uma criatura transcendental, imortalizada pelo seu criador, o ator e humorista Jorge Loredo, que conquistou milhões de fãs por todo o Brasil, com seus bordões invadindo lares e botequins. Com vocês, Zé Bonitinho!

Em pleno coração de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, a porta da esperança se abriu e Jorge Loredo desceu do carro cumprimentando todos com extrema elegância e confirmando: “O chato não é ser bonito, o chato é ser gostoso”. Atônito, me ajoelhei diante daquela pessoa que marcara profundamente a minha vida. Estava frente a frente com o mentor do personagem Zé Bonitinho.

Meu inquietamento é notório. Desejo aprender tudo – técnicas, trejeitos, gags, bordões e idiossincrasias – deste artista fascinante. Afinal, quem não quer ser o “perigote das mulheres”? Avant-garde desde períodos ancestrais, Loredo desafia a caretice em um manancial inesgotável de sabedoria, tragédia e humor. Aos 89 anos, destila como ninguém detalhes minuciosos de seu passado glorioso.

Deborah Engel

Arthur segue as instruções de conquista do mestre

Arthur segue as instruções de conquista do mestre

Vou direto ao ponto, quero saber da mulherada nos tempos áureos. Jorge fazia jus aos bordões de Bonitinho? “Que nada, Arthur, sempre fui tímido com as beldades”, responde o humorista. E acrescenta: “A maioria dos artistas e comediantes é introvertida por natureza. Meu mestre Oscarito parecia um professor de latim. Não gostava de ser engraçado pessoalmente. Os grandes humoristas e comediantes que conheci passaram por sofrimentos e tragédias. A maioria sofre ou sofreu bastante bullying e preconceito”.

Zé perigote

Nossa conversa atravessa a trajetória de vida deste magistral comediante. Jorge resgata seu encontro com o mestre da mímica Marcel Marceau. Conta que estudava teatro nos anos 50 e 60, quando o francês veio com sua companhia ao Brasil. “Em sua apresentação-aula, Marcel me chamou para ser cobaia de seus movimentos no púlpito. Fiquei realizado. Ao final, fui convidado para ver seu espetáculo no Teatro Municipal. Até hoje não me esqueço. Ele fez, sozinho, o homem e o vento. Você jurava que estava ventando e ele se defendia do vento. Arte pura”, conta o comediante.

Veneração e entusiasmo dão o tom do meu estado de espírito. Recordando as muitas vezes que imitei os trejeitos e olhares deste Casanova tupiniquim, fui entrando no clima. Pergunto a ele sobre a origem de seus personagens. Afinal, de onde veio Zé Bonitinho? “Meu caro, o humorista de talento possui as mesmas qualidades de um grande fotógrafo. Ele vai observando e construindo seu personagem. O Zé Bonitinho nasceu de muita observação”, conta ele. Segundo o mestre, ele morava no bairro da Tijuca e passava os dias numa praça com uma turma de amigos, conversando e observando as garotas passarem. “Um deles se chamava Zé Perigote. Ele foi minha fonte de inspiração. Copiei tudo dele. Ele olhava uma mulher e dizia: ‘Aquela ali, huummmm’ ou ‘Aquela outra já peguei’. Se gabava de que havia estado com todas. Incrédulos, um dia o colocamos no paredão. Apontamos uma beldade de difícil acesso e comprometida. Ele disse: ‘Espera’. Um dia ela foi ao cinema sozinha. Ele sentou atrás dela. A mulher saiu e o sujeito nada. Depois veio com um sorriso dizendo: ‘Mais uma’. Descobrimos que o cara era uma grande farsa, não pegava ninguém.”

O tempo escoa e vou direto ao ponto. Não posso perder a oportunidade de aprender com o Zé Bonitinho como ter “a mulherada correndo atrás, mesmo sem ser bujão de gás”. Pergunto ao mestre: “Jorge, você poderia me ensinar a arte de cortejar do Zé Bonitinho?”. A lenda viva responde: “O negócio é o seguinte: você dá um olhar de desprezo e finge que não presta atenção. Fica sentado naquela pose clássica de pernas cruzadas do Albert Einstein. Você despreza, até que um dia vai se aproximando e tem o acasalamento. É a dança do lobo e da loba”.

Câmera, close!

Enquanto recita, percebo que Jorge incorpora o personagem e sigo seus movimentos como um fanático. Pequenas nuances vão se revelando, como a passada do dedinho na ponta da língua combinada com a perfeita levantada de sobrancelha. Repito milimetricamente o conjunto da obra. Segundo o mestre, o clímax que garante o enlace com a beldade está na lambida. Ensaio com ênfase e dedicação e finalizo com o clássico bordão: “If I had a thousand women, au auuu auuuuu”. O guru das cantadas sorri, aprovando meus movimentos.

Sou ligeiro e pergunto sobre stand-up comedy e os comediantes atuais. Loredo diz: “Aceito todos os movimentos. Humor é coisa séria, é liberdade. Basta ver os países ditatoriais, ali não existe humor. Brincando se passa uma mensagem. Os mestres Carlitos e Buster Keaton, por exemplo, transmitiam ideias com muita sabedoria”.

Autêntico aristocrata que é, sem dispensar nenhuma mesura ou salamaleque, nosso convidado se despede e não perde a oportunidade de dar uma sutil cantada em nossa produtora. Fiquei na minha, decodificando seus trejeitos. Seria aquele Jorge Loredo ou a entidade sedutora de Zé Bonitinho? Câmera, close!

Agradecimento: Brechó Minha avó tinha

Faz-me rir

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Trip passou um dia com uma turma que é paga para dar risada – e para induzir você a fazer o mesmo. Conheça os integrantes do auditório de A Praça é Nossa, uma das últimas claques de verdade da TV brasileira

“Bom dia, minhas pombas-rolas!”, era como Sineide Pereira saudava as senhoras que subiam – algumas com certa dificuldade – no ônibus que partiria da zona leste de São Paulo para o SBT. “Mas você tá a cara da riqueza, meu bem”, acrescentou a uma delas, para em seguida dar-lhe um tapinha no derrière. “Sua safada!”

Desde 1999, a pernambucana arretada, de 50 anos, é encarregada de selecionar e levar as pessoas que compõem o auditório de A praça é nossa. Ao lado do Zorra total, da Rede Globo, que não permitiu a entrada da Trip em seus estúdios, ele é o único programa da TV brasileira que ainda utiliza uma claque de verdade, isto é: as risadas e os aplausos que você escuta na transmissão foram gravadas ao vivo, não são uma trilha pré-gravada incluída na edição. “Nos outros programas você percebe na hora que as gargalhadas são sempre as mesmas, artificiais. Acho ridículo”, critica a expert.

São em média 40 pessoas (30 mulheres e 10 homens) em sua caravana. “O SBT não deixa eu levar menos de 37. Se alguém falta ou fica doente, dou um jeito de substituir na hora. Em 14 anos, nunca deixei de cumprir minha missão”, gaba-se. As mais desinibidas, de riso fácil, são convocadas toda semana. Com as “mais apagadinhas”, ela faz um rodízio. “Tenho mais de 500 pessoas cadastradas. Falo para todo mundo espalhar meu telefone. Sou garota de programa”, brinca. O difícil é agradar todo mundo. “Teve uma mulher que me esperou fora do ônibus com uma faca, porque eu disse que não ia poder levar ela. Desci e falei: ‘Vem cortar o meu bucho que eu quero ver!?’ Mas essas pessoas não me atingem, são apenas pedras que eu tiro do caminho.”

Jordi Burch

A pernambucana Sineide Pereira, que desde 1999 seleciona pessoas para o auditório de A Praça É Nossa

A pernambucana Sineide Pereira, que desde 1999 seleciona pessoas para o auditório de A Praça É Nossa

As idades flutuam entre 18 e 87 anos. Senhoras são maioria; senhores eram coisa rara, mas são cada vez mais frequentes. “Teve um que me deu um problemão: engasgou com a dentadura, acredita?!”. Teresinha Augusto, 74 anos, é a integrante mais animada da trupe, e também uma das mais antigas: segue Sineide neste e em outros programas desde que ela virou caravaneira. “Vim parar aqui porque minha risada é famosa. Meu pai até batia na minha boca de tanto que eu gostava de rir”, rememora, arrematando, claro, com uma gargalhada, aguda como a de uma criança. Quando vê o fotógrafo que acompanhou a reportagem, puxa palmas e entoa Michel Teló: “Delícia, delícia, assim você me mata”.

Sentada ao seu lado está Amely Costa, 78 anos, também proprietária de uma senhora risada. “Não deixam nem a gente sentar perto na gravação”, lamenta. Fã dos quadros de Paulinho Gogó e da Turma do Rapadura, ela conta que, se for preciso, desmarca até o médico para contribuir com a claque. “Rir, para mim, é o melhor remédio. Eu vivia depressiva em casa, sozinha. A Sineide mudou minha vida”, revela. “E ainda ganhamos um dinheirinho bom. Pago a conta de água e faço a feira com ele.”

Amely, Teresinha e demais membros da “família”, como Sineide gosta de chamar, recebem R$ 20 por dia da emissora, além de dois lanches (um na entrada, outro na saída) com refrigerante, sanduíche e bombom. “Parece pouco, mas tem muita gente aqui que passa a semana com esse dinheiro. Às vezes, trago três pessoas da mesma família para ajudar. Uns usam para carregar o bilhete único e ir atrás de emprego, outros vão direto para o supermercado”, diz. “Eu não como mais salsicha, né?! Mas eles vão lá e compram salsicha, arroz, feijão...”

Sineide era dona de salão de beleza até “ganhar” uma caravana de um cliente que trabalhava no ramo, quando ela disse que não tinha dinheiro para fazer os óculos de uma das três filhas. “Meu marido, que hoje graças a Deus é ex-marido, não queria nem saber.” Não é contratada do SBT, mas recebe R$ 250 por dia de trabalho. As gravações são semanais, geralmente às terças-feiras. Ela realiza ainda caravanas para outros programas, como Domingo maior, CQC e Pânico (“nesse só vai moleque, todos doidos para ver a bunda das panicats”), organiza excursões para cidades históricas e hotéis-fazenda e revende produtos de cama, mesa e banho. Por mês, estima, tira pelo menos R$ 3 mil. “Hoje tenho apartamento próprio, carro e casa de veraneio. E ainda paguei curso para todas as minhas filhas. Disse pra elas: ‘Eu dou um caminho. Você faz dele um infinito.’”

Jiló e quiabo

O ônibus, cedido pela emissora, sai do Itaim Paulista às 11h30. Depois faz mais duas paradas para buscar outros caravanistas e um pit-stop em um posto de gasolina, próximo ao estúdios do SBT, na Anhanguera. É quando todos sacam suas marmitas da bolsa e forram o estômago para aguentar as quase seis horas de gravação. Querida por todo mundo, Sineide nem precisa levar almoço: ganha de presente um Tupperware “com arroz, mistura, jiló e quiabo”.

Na TV, antes do luminoso “On Air” do estúdio 3 acender, Roque, o fiel escudeiro de Silvio Santos há 54 anos, faz as honras da casa.

Os donos das melhores risadas (leia-se: nem muito alta, nem muito baixa) são colocados nas filas da frente; os que riem de forma mais exaltada ficam no fundão

“Quem inventou esse negócio de claque”, jura, “fui eu”. “Nos tempos da rádio, quando vinha gente desconhecida para cantar, eu arranjava 20 fãs histéricas em um minuto. Ou quando era enterro de gente famosa e sem amigos eu descolava um monte de gente para chorar.” As risadas de hoje não são boas como as de outrora, na sua opinião. Ele tenta explicar: “Eu arranjei um cara que ria assim: ihhhhh hahaha! Parecia um avião decolando. Outro era assim: há! Só isso, bem grave. Hoje todo mundo ri igual. Aliás, vou falar sobre isso com o Carlos Alberto de Nóbrega [apresentador de A praça].”

Pouco antes das 15 horas, a caravana de Sineide faz fila indiana para entrar no estúdio. Os outros quarenta assentos serão ocupados por outra caravana, a de dona Isa, que não quis revelar o sobrenome nem posar para fotos. Os donos das melhores risadas (leia-se: nem muito alta, nem muito baixa) são colocados nas filas da frente; os que riem de forma mais exaltada ficam no fundão. Três microfones pendendo do teto registram tudo.

Quem faz a mágica acontecer é a assistente de palco Carla Liberal. Com o roteiro nas mãos, já com as piadas marcadas, e de olho no monitor, ela fica em frente à plateia pedindo risadas ou aplausos. É instantâneo: ela levanta um braço e as 80 pessoas (menos uma, que estava adormecida) explodem em gargalhadas; levanta o outro e parece que o volume dobra; abaixa os dois e não se ouve mais nem um pio. “Acho incrível a capacidade que essas velhinhas têm, pois eu mesma não consigo rir se me pedirem. Elas riem mesmo quando não entendem a piada”, diz Carla, que costuma ganhar presentes e doces caseiros das integrantes de sua “orquestra do riso”.

Nos intervalos, alguns caravanistas pedem para tirar fotos com os atores. Os poucos rapazes presentes preferem assediar a atriz Fabiana, mulher de Alexandre Frota, provavelmente atraídos pela comissão de frente – e de trás também – artificialmente avantajada da moça. Enquanto isso, Sineide fica na sua. “Quando comecei no ramo, gastava tudo que ganhava em filme de Polaroid. Tirei foto com todo mundo. Hoje em dia não. Sei que os famosos são pessoas normais, que nem eu”, diz. A caravaneira já desfrutou de seus 15 minutos de fama, fazendo pontas na Praça. “Já me chamaram para ser mãe de mafioso, sogra... Já fui sapatão também. Adorei! Fiquei idêntica.”

Jeff Hakman riu por último

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Do posto de mais jovem campeão mundial de surfe ao fundo do poço do consumo de heroína, o americano Jeff Hakman viveu de tudo um muito. Trip conversou com o homem em uma praia paulista, entre risadas, memórias e garfadas de arroz com feijão

“Call me Jeff”, ele disse de cara. Encontrei Jeff Hakman, o “ex-junkie legend” – quem o definiu assim certa vez foi o cineasta Marcos Prado – junto com Bob McKnight (hoje presidente do conselho da Quiksilver, depois de 40 anos como CEO) na praia, apresentado por um amigo em comum, Alfio Lagnado. Com poucos traços que denunciem seus 64 anos visceralmente vividos, Jeff, longe da terceira idade, está mais para quem terceirizou a idade: parece que pelo menos dez anos da sua existência foram entregues para algum incauto menos energizado carregar e metabolizar, enquanto ele simplesmente sorri.

Com entusiasmo, ele começa a contar histórias vivas, cheias de tsunamis pessoais. Uma estranha e poderosa energia interior sobressai a cada palavra. De que outra maneira alguém poderia ter descido ao inferno da heroína por diversas vezes, beijado o Diabo na boca, emergido para contar qual o sabor dos lábios do coisa-ruim e ainda, sexagenário e cheio de energia, querer vir morar no Brasil e recomeçar a vida mais uma vez? Fucking amazing.

Para Jeff o surf começou em Palos Verdes, Califórnia. Aos 8 anos, levou um caldo traumático que o manteve longe da água por um ano. O pai o incentivou a insistir. Na primeira onda boa, a maravilha venceu o medo. Dois anos depois convenceu os pais a se mudarem para o Havaí.

“Embora existam muitas pessoas surfando no planeta, não há muitos surfistas genuínos, na sua forma mais pura. Esses indivíduos são únicos e todos têm uma paixão em comum, num nível muito alto”

Aos 18, na fila de alistamento para a Guerra do Vietnã, protagonizou um desempenho convincente como homossexual que lhe valeu a dispensa do Exército. Em 1969, aos 21, já considerado o melhor surfista de competição do mundo, revelou-se um dos piores contrabandistas do planeta – e também um dos mais sortudos. Foi pego por federais com alguns quilos de maconha que ele e o amigo Buddy Boy Kahoe (que faleceria anos depois de overdose de heroína) enviaram para si próprios, em caixas de som revestidas de papelão, da Tailândia para Haleiwa, na Costa Norte de Oahu, no Havaí. Mas se safou devido a duas falhas técnicas do DEA (o departamento de combate às drogas dos EUA ): 1) Interceptar o correio é ilegal e qualquer prova que emane daí é inválida. 2) Os policiais seguraram as evidências tempo demais. Essas ações, pela lei americana, são inconstitucionais. O juiz desqualificou as acusações. Por pouco, em vez de contemplar as plantações de cana-de-açúcar que emolduram a paisagem do arquipélago, Jeff não apreciou outro tipo de cana, bem mais amarga.

O mais baixo da classe

Andando pela praia até minha casa, no litoral norte paulista (eu queria lhe dar meu livro Almaquática, feito com o fotógrafo Klaus Mitteldorf e o designer David Carson, que Jeff conhecia de outros carnavais), ele falou do fascínio com o Brasil: “Vivo na França há 30 anos. Os invernos são muito longos. O Brasil é uma ótima alternativa. Você ainda encontra praias vazias, vida selvagem, ótima comida, bom tempo e um estilo de vida vibrante que não é muito caro”. Sobre o surf, acredita que, “embora existam muitas pessoas surfando no planeta, não há muitos surfistas genuínos, na sua forma mais pura. Esses indivíduos, eu são únicos, e todos têm uma paixão em comum num nível muito alto”.

Eu ouvia tudo isso do cara que foi, aos 17 anos, o mais jovem campeão mundial de todos os tempos. Embora não houvesse na época o Campeonato Mundial no formato que conhecemos hoje, não é exagero dizer que Jeff dominou o esporte na maior parte da década de 70, vencendo por duas vezes o prestigiado Campeonato Eddie Aikau Invitational, por três vezes o Hang Ten Invitational e levando o caneco do primeiro Pipeline Masters e do Guston Pro na África do Sul. Ainda aos 17, foi eleito o melhor surfista de ondas grandes do mundo. Casca-grossíssima. Que, curiosamente, foi o garoto mais baixo da classe nos tempos de escola. Teria sido essa característica um motivador extra? Ele admite que o fato adicionou vontade a mais para superar obstáculos e mostrar que podia fazer e acontecer. O surf agradece Jeff não ser 10 centímetros mais alto.

“Vivi na França por 30 anos, os invernos são muito longos. O Brasil é uma ótima alternativa. Você ainda encontra praias vazias, vida selvagem, ótima comida, bom tempo e um estilo de vida vibrante e não muito caro”

Falamos muito de suas performances nas décadas de 1970, em especial de uma na praia de Puntas Rocas, no Peru, quando Jeff ostentava a prancha gun branca e se destacava pelos fortes e precisos botton-turns, projetando linhas longas, traçadas com fluidez e o famoso power difícil de definir, com o centro de gravidade baixo, que os juízes adoravam. Nomes de surfistas peruanos da época foram pipocando na conversa – Felipe Pomar, Gordo Barreda, Chino Malpartida, Fernán Ortíz de Zeballos. A noção de hospitalidade de alguns peruanos (e brasileiros) com os surfistas estrangeiros passava pelo fornecimento de presentes psicodélicos – cocaína e maconha. Eram tempos de excesso de experimentação com pouca informação. O costume cimentou amizades e diluiu vidas. Jeff foi fundo.

Posição fetal

Em 1973, acompanhado da namorada Sandy Raymond e do compadre Gerry Lopez, desbravou Bali, suas ondas e seus cogumelos. Deslumbrados, surfaram Uluwatu e Kuta Reef non-stop. Foi nessa época que a heroína, que seria sua companheira por anos, foi apresentada por Sandy. Um ano depois, houve a final antológica do Duke Kahanamoku Invitational em Waimea Bay, contra Reno Abelira, na qual Jeff ficou em segundo por margem mínima, no maior mar surfado em um campeonato até então, com séries de até 30 pés (10 metros). Muitos surfistas se recusaram a entrar na água. Ele entrou ainda na madrugada, para treinar e se adaptar às condições extremas antes da competição.

Arquivo pessoal

Jeff e o pai saindo de uma session no Havaí

Jeff e o pai saindo de uma session no Havaí

Em 1975, vendo o sucesso de marcas como a Lightning Bolt, levadas pela aura de Gerry Lopez, Jeff e Bob McKnight resolveram entrar na indústria de surfwear. Jeff sabia tudo de surf; Bob, administrador de empresas, sabia tudo de negócios: a parceria de sonho. Jeff tinha gostado de uma bermuda emprestada pelo amigo australiano Mark Warren. O nome da marca? Quiksilver. Decidiu ir atrás da licença para levar para os EUA. Em Bell’s Beach, jantou com Alan Green, um dos donos da marca, que não estava convencido da proposta. “O que preciso fazer para ter a licença? Querem que eu coma essa toalha de papel?”, provocou Jeff, que em seguida pegou a toalha, mastigou e engoliu. Ganhou.

No curto período na Austrália, sob o efeito avassalador da heroína, o campeão conseguiu fazer o maior negócio da sua vida além de ser o primeiro estrangeiro a vencer o Bell’s Beach Contest, sem que ninguém percebesse o que se passava dentro dele. Na volta para o Havaí, Jeff passou as 12 horas de voo encolhido, tremendo, em posição fetal. A droga cobrava seu tributo.

Sua resistência insana veio à tona novamente em 1981, quando ele não conseguiu sair por cima da junção de uma onda de 10 pés que ia se fechando em Backyards, Oahu. Jeff foi jogado de cabeça no recife de coral. Conseguiu chegar à praia, onde o amigo e famoso fabricante de pranchas de surf Tom Parrish tentou não vomitar ao ver o ferimento que abriu uma avenida irregular em sua testa. Tom respirou fundo e o levou ao hospital. Lá chegando, os médicos que costuraram os mais de 50 pontos no escalpo dilacerado não podiam acreditar que ele não havia desmaiado com o impacto. Permanecer consciente foi o que salvou a sua vida.

Atrás do balcão

A bela biografia de Jeff, Mr. Sunset, escrita por Phil Jarratt e lançada em 1997, narra com precisão e crueza como ele ganhou grana levando a Quiksilver da Austrália para os EUA – e como detonou tudo com as drogas, sendo “deletado” na companhia. Ele se recuperou anos depois, ao introduzir a marca na Europa, enfatizando mais o lado ‘snowboard’ do business. Outra vez milionário, cedeu novamente ao sussurrar da serpente: vendeu ações da empresa, que foram parar direto no seu braço, a preço de abacaxi.

Uma metáfora suave (e terrível) descreve a recaída na heroína como a tap on the shoulder, “um tapinha nas costas”. Distraiu, olhou para trás, dançou. Quando a Quiksilver na Europa estava começando a decolar, Jeff desviou dinheiro da companhia e dos amigos que haviam lhe dado outra chance para sustentar a nova escorregada. Sentiu-se culpado, mas a lógica do vício não considera ética ou amizade. Para a heroína não existe mundo lá fora.

“Eu tinha 13 anos e meu pai, um Waterman experiente, falava: ‘Vamos lá! se você estiver se afogando eu te tiro’. só que quando entrava a série [em Waimea], ele era o primeiro a ser varrido!”

Quando, em 1982, sua mulher na época, Cherie Radcliffe, o acordou no meio de uma noite para irem ao hospital – o primeiro filho do casal ia nascer – Jeff a levou, mas saiu em seguida para mais uma dose. Na volta, viu o nascimento de Ryan através da cortina difusa de loucura da heroína. Tempos depois, foi levado por amigos para um programa de reabilitação numa das melhores clínicas do mundo, em Londres. Livrou-se da droga e reconhece que o lugar ensinou muito, inclusive a dizer não.

Limpo, mas falido, Jeff foi morar em Gold Coast, na Austrália, a poucos passos do pico de Burleigh Heads, com Cherie e Ryan (um ano depois viria a filha, Lea). Para pôr comida na mesa, engoliu o orgulho e pediu emprego na surfshop do amigo Paul Nielsen. Após longos segundos de silêncio e constrangimento ao telefone, Nielsen aceitou. Certo dia, Nat Young, famoso surfista australiano que havia competido com Jeff, entrou na loja e não acreditou quando o viu atrás do balcão. Outros amigos que passavam por lá, ao verem o lendário Mr. Sunset vendendo parafina, também não sabiam o que dizer. Mas ele foi se reerguendo. Surfava quase todo dia, deu aulas de surf para crianças – e se lembra desse tempo como um dos mais felizes da sua vida.

Arquivo pessoal

com Alan Green, fundador da Quiksilver, no Tahiti, em 1978

com Alan Green, fundador da Quiksilver, no Tahiti, em 1978

Resiliência

Sentado na minha varanda, olhando ao mar, ele diz num tom mais introspectivo: “Cometi muitos erros, Sidão”. “Ei, Jeff, quem não cometeu? Isso é passado, o negócio é focar no hoje.” Ele sorri mais uma vez. Quando pergunto se ele sente ter o poder de reconstruir a sua vida no momento que quiser, a resposta é: “Eu costumava pensar isso, hoje é muito mais difícil”.

Fico imaginando se a mesma força interior que o fez remar com o pai para o outside de Waimea, ainda menino, lhe deu a luz para sair fora da pegada da heroína, substância que o Rolling Stone Keith Richards definiu como “a mais sedutora das drogas”. Jeff Hakman confirma que a coisa mais difícil com a qual teve que lidar na vida, a número um, de longe, é mesmo o vício. Nada que o tenha transformado em uma pessoa amarga ou sem humor. Perguntado sobre uma cena engraçada na sua vida, ele lembra de um episódio recente, quando dirigiu 30 minutos para ir surfar em Byron Bay, na Austrália, com o filho Ryan: saiu do carro, colocou o calção, pegou a parafina, trancou o carro... e então viu que tinha esquecido a prancha.

Também é rindo que ele conta, entre garfadas de arroz integral com feijão preto e salada de couve-flor com brócolis, que devorou com apetite de náufrago (e repetiu), como foi ter 13 anos e entrar em Waimea. “Eu estava cagando de medo”, ele diz. “Meu pai, um waterman experiente, falava: ‘Vamos lá! Se você estiver se afogando eu te tiro’, só que, quando entrava a série, ele era o primeiro a ser varrido! E eu ficava cagando de medo ainda mais, boiando sozinho.”

O périplo de outro campeão mundial, Andy Irons, na onda das drogas, teve resultado oposto. Jeff foi fundo, mas veio à tona, duas, três, dez vezes. Irons subiu precocemente para o andar de cima. Não sei até que ponto ele está consciente da própria resiliência; o fato é que está reconstruído. Hoje é consultor de marketing da Quiksilver, tem amigos por todo o mundo e uma namorada brasileira, com quem se casa em breve. O que fica da vida de montanha-russa? “Os poucos instantes em que estou totalmente no presente, apenas sendo, apreciando o momento”.

Mais do que ganhar campeonatos, fazer amigos, rodar o mundo, ter empresas de sucesso, comer arroz e feijão com histórias, experimentar de tudo um muito, regenerar-se parece ser a grande especialidade e o talento diferenciado de Jeff Hakman. Saber lidar de maneira instintiva com as profundezas abissais do mar e da alma, e com os altos cumes da experiência humana.

Jeff, uma onda de cada vez, amigo. Aloha.

*Sidney Luiz Tenucci Jr., o Sidão, foi criador da OP Ocean Pacific no Brasil. Jornalista formado pela USP, é colunista do site Waves e autor dos livros Almaquática (ed. Terra Virgem), O surfista peregrino e Poentes de amor (ed. Decor). Lança em breve Os sete chakras geográficos, pela ed. NeoAnima.

Júlia Bernardi

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Júlia Bernardi, 19 anos, nasceu e cresceu em Fernando de Noronha, “em uma casa simples na ponta da ilha”. Ela sobe em qualquer árvore, pega carona com todo mundo e tem um cachorro que só entende francês

Em Fernando de Noronha, existe a lenda do pecado. Ela é da época de quando Noronha ainda era uma ilha sem mulheres, a prisão selvagem dos homens. Fala sobre o amor proibido entres dois seres gigantes, adúlteros e, com certeza, um tanto safados. Foram castigados por amar demais (leia-se: por fazer muita safadeza por aí) e transformados em cartões-postais para os turistas. Os dois viraram o Morro do Pico e o Morro dos Dois Irmãos.

Noronha é uma ilha no meio de um Atlântico bravo, um pequeno paraíso feito da pedra vulcânica de um amor proibido. Desse vulcão, que era uma ilha sem mulheres, vem esta mulher aqui, a Júlia, de 19 anos. Ela cresceu numa casa simples na ponta da ilha, cercada de mar, com uma mãe bronzeada que acorda de baby-doll cor-de-rosa e um cachorro que só entende francês. Sabe o que significa “nadar no mar de fora”, sabe esperar a maré. Seus pés já sabem pisar nos ramos certos das árvores vermelhas, seu rosto já procura o sol e a sombra com facilidade. Sabe como funciona o músculo da curva da bunda, como mexer as linhas das coxas douradas.

Ela se empolga mostrando a terra dela. Sobe nas árvores, deixando a blusa branca cair na grama, coberta de flores vermelhas. Sobe nas pedras. Suas pernas firmes e morenas a levam para todos os cantos da ilha. Pega carona com facilidade. Gosta de comer lagosta, sabe quebrar um marisco com uma pedra para alimentar os peixes.

Ela tira o biquíni, deixa a bandeira voar atrás dela no vento junto com os cabelos

No nosso primeiro encontro, busco ela em casa cedinho, no amanhecer. Ela abre a porta de calcinha branca e de canga. O cachorro loiro deve estar pensando o mesmo que ela, acompanhando cada passo seu. Júlia fala francês – um souvenir de um ex-namorado da mãe – com ele. O vento bate forte, espalhando os cabelos dela pelo rosto. A blusa cai dos ombros.

Tal mãe, tal filha

Parece um sonho acordar nessa casa dourada com o sol da manhã, uma pequena cerca de madeira e o oceano enorme e violento atrás, numa rua sem número. A mãe, vestida com uma camisola de seda e renda, sai do portão. Um sorriso sonolento se abre. Ela olha para a filha, nua e com os cabelos ao vento, com certo orgulho, de um jeito que só uma mulher linda e forte olha, quando sabe que com seu corpo fez outra mulher linda e forte. Dá um beijo no rosto da filha e faz um café para nós. Me sinto honrada de poder testemunhar esse tipo de coisa, o quanto essas duas mulheres são fortes, bonitas, sexy e pertencem uma a outra. E moram aqui, nessa pequena casa de cimento pintado de amarelo com água brava em volta.

No dia em que a gente pega um barco e sai pela Praia do Sancho, fico maravilhada com o quanto ela é adepta do mar. Sabe navegar as ondas, fica dois minutos na apneia, dando cambalhotas nua por baixo das ondas. A menina é feita de sol – só de olhar para a pele dela já dá calor. Ela me diz que quer virar fotógrafa, que quer fotografar paisagens. Que vai pegar a grana que ganhou fazendo essas fotos para fazer um curso de fotografia em Natal.

Depois fomos para uma baía, cujo nome não me lembro mais. Pegamos a bandeira de Noronha emprestada da prefeitura, a única bandeira que existe na ilha.

Ela tira o biquíni, deixa a bandeira voar atrás dela no vento junto com os cabelos. Levanta mais a bandeira para mostrar melhor a bunda dourada. “Assim tá bom?”

E aqui estamos, com o que sobra dessa ilha do paraíso e do pecado, com essa mulher tão jovem, com tanto potencial. O escritor Oscar Wilde disse melhor: “Represento para você todos os pecados que nunca teve coragem de cometer”. Eis a Júlia. Ela, o pecado mais corajoso do paraíso.

Coordenação Geral: Adriana Verani
Produção: Flavia Fraccaroli
Assistentes de Foto: Michele Roth
Agradecimentos: Atairu Brasil / Atlantis Divers / Dolphin Hotel Noronha / Parque Nacional Marinho Fernando de Noronha - ICMBio


Antonio Tabet, o Kibe Loco

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Criador do Kibe Loco, um dos sites de humor mais acessados da Internet brasileira, e do Porta dos Fundos, a série de programas on-line que virou mania nacional, Antonio Tabet explica a trajetória de publicitário-que-virou-blogueiro-que-virou-ator e entrega: “Ser reconhecido me envaidece”

Antonio Pedro Tabet, publicitário por formação, blogueiro famoso quase por acaso e agora mais conhecido como “um dos caras do Porta dos Fundos”, o programa de humor que sacramentou a noção de que, sim, a televisão do futuro (ao menos até onde podemos vislumbrá-lo) é a internet, talvez nem tenha se dado conta: ele é prova de que John Cleese estava certo.

Cleese, o britânico com meio século de serviços prestados ao humor de alto nível – é um dos fundadores do Monty Python, grupo surgido em 1969 na TV inglesa e reverenciado por gerações de comediantes –, foi quem disse a frase que abre este texto, proferida em uma das inúmeras vezes em que foi consultado sobre “como ser criativo”. Tabet, um carioca de 38 anos que em 1994 entrou no curso de comunicação da UFRJ disposto a se tornar um publicitário de sucesso, desses que vivem em “escritórios branquinhos cheios de pufes” (a definição é dele), entre idas a Cannes e doses de champanhe, descobriu brincando, matando hora no expediente, que o caminho do sucesso estava longe dos leões de metal distribuídos na Riviera Francesa. Estava na internet.

No ano de 2002, funcionário frustrado do departamento de marketing do banco Icatu, Tabet passava as tardes enviando piadas e fotomontagens por e-mail aos colegas da empresa. Advertido por “um babaca do departamento de TI” (a definição também é dele) de que as brincadeiras seriam monitoradas pela empresa, achou por bem parar de usar o correio eletrônico da firma e passou a despejar as gracinhas em um blog, que ganhou o mesmo nome da coluna que produzia no jornal da faculdade: Kibe Loco – Kibe por causa de sua ascendência árabe; Loco por ser o portunhol o idioma oficial da extinta coluna.

Nascia uma das páginas mais acessadas da internet brasileira. Em 2005, a audiência era tal que o blog virou ocupação principal, remunerada pelo portal Globo.com, que o hospedava. Passados 11 anos, o Kibe segue como fonte de renda, trazida não só pelo hospedeiro, agora o R7, da Record, mas também pelas marcas que o elegem como vitrine para aparecer.

Sociedade alternativa

Mesmo quem não costuma digitar www.kibeloco.com.br para ver as blagues postadas diariamente por Tabet (e dois ajudantes de texto e arte) certamente já foi atingido por algum dos conteúdos que, para usar o internetês do Brasil, “bombaram” por causa dele. Dois exemplos: o vídeo de 2004 em que William Bonner imita o estilista Clodovil em um intervalo do Jornal Nacional (visto 4 milhões de vezes) e o clipe de “Dança do quadrado”, produção de baixíssimo orçamento lançada em 2008 que se tornou um dos vídeos virais de maior sucesso do país e rendeu a Tabet um prêmio da MTV.

Jorge Bispo

Antonio Tabet

Antonio Tabet

De olho na verve que deu origem a tais sucessos (e a sátiras como a que colocou a senadora Heloísa Helena numa capa da revista Playboy), Luciano Huck o convidou em 2007 para fazer parte da equipe do Caldeirão do Huck. A parceria terminou em janeiro de 2012, quando Tabet, que vinha de um certo desgaste na Globo (onde tentou emplacar, sem sucesso, projetos paralelos ao Caldeirão), decidiu que era hora de zarpar. A mudança o levou ao retumbante sucesso Porta dos Fundos, que desde agosto de 2012 já lançou quase 90 vídeos em um canal do YouTube e contabilizava no fechamento desta edição 2.622.000 espectadores inscritos e mais de 226 milhões de exibições.

O projeto começou com um encontro entre Tabet e Ian SBF, então diretor do Casseta & planeta, no início do ano passado. Como ele, Ian também produzia conteúdo de humor na internet, os vídeos do canal Anões em chamas. Entre chopes e petiscos do bar Diagonal, no Leblon, a dupla combinou de produzir episódios de CSI Nova Iguaçu, versão esculhambada de séries sobre investigação policial.

A ideia de fazer vídeos de humor para exibir na web atraiu um amigo de Ian, Fabio Porchat, talento da comédia stand-up que também tinha um pé na Globo. Pouco depois, embarcavam no negócio o ator e roteirista Gregório Duvivier e o publicitário João Vicente de Castro, outro egresso da equipe do Caldeirão. Estava formada a sociedade que nasceu alternativa – mas que hoje está por cima da carne-seca. Toda segunda e quinta-feira, quando são colocados novos episódios no ar, os cliques, likes e compartilhamentos on-line só aumentam.

Alegria de classe média

Assistidos por milhões de pessoas, prestigiados pelos colegas de profissão, assediados por emissoras de TV, os integrantes do Porta dos Fundos somam hoje quase 30 pessoas – os cinco sócios mais atores, editores e técnicos contratados. O grupo também caiu nas graças de diretores de marketing – ao menos os que entenderam que, em tempos de redes sociais, não adianta tentar abafar críticas ou dar respostas evasivas ao público: as marcas devem entrar no jogo com transparência; melhor ainda se for com bom humor.

Foi o que fez a rede de restaurantes Spoleto, alvo de um dos primeiros episódios da trupe. O vídeo que mostra uma consumidora sendo maltratada por um atendente da rede levou a marca a contratar o grupo para criar outro vídeo, este em seu favor. O case fez com que outras marcas aderissem à estratégia de rir de si mesmas: o Porta dos Fundos já produziu trabalhos sob encomenda para Bis Lacta, Fiat e Caixa Econômica.

Tabet não fala em valores, nem mesmo o custo dessa estrutura. “Primeiro porque correria o risco de dar um número errado”, diz ele. “Segundo porque nos comprometemos a não falar de grana.”

Ele recebeu a Trip no escritório do Kibe Loco, no Jardim Botânico, no Rio. Os quadros na parede revelam um pouco da vida do dono – de uma camisa do Flamengo emoldurada a imagens de reportagens que saíram com ele na imprensa. Tabet teme que a decoração dê sobre ele a falsa impressão de “empresário bem-sucedido se vangloriando de seus feitos”. E trata de explicar que a aparente egolatria é só “alegria de classe média”.

"Eu era o cara que se apaixonava. Chorei muito por mulher na escola"

Fã de Millôr Fernandes, Luis Fernando Verissimo, Tutty Vasques – e, claro, Monty Python, ao qual o Porta dos Fundos é corriqueiramente comparado –, Antonio Tabet não se importa com “a onda politicamente correta” que pareceu ameaçar comediantes ultimamente. Para ele, é bom que humoristas se policiem para que, em vez de cair em piadas agressivas, encontrem algo que faça mais gente rir junto. Uma ideia, aliás, também defendida por John Cleese, para quem o grande poder do riso é justamente o de igualar as pessoas, “destruindo qualquer sistema de divisão social”.

Vamos do começo: como é a história da sua família? 
Meu avô paterno era libanês, mas não conheço muitos detalhes. E a família por parte de mãe é portuguesa. Meus pais nasceram no Rio e viraram médicos, os dois. Tenho dois irmãos mais novos, um é médico e o outro é advogado, Marco Antonio e Fernando Antonio, que era o nome do meu pai também.

Seu pai já morreu? 
Meu pai morreu quando eu tinha 15 anos e foi a pior coisa que aconteceu na minha vida.

Do que ele morreu? 
Câncer. Meu pai era um médico respeitado, foi diretor do [Hospital] Pedro Ernesto, diretor da Uerj, já tinha sido convidado pra trabalhar em Secretaria de Saúde. E era um cara forte, corpulento, corria na praia todo dia. Ele teve câncer no cérebro, muito difícil de lidar porque tinha dia que ele estava ótimo e tinha dia que ele estava um vegetal. Então, de uma estrutura familiar toda montadinha – pai, mãe, eu, um irmão dois anos mais novo e outro que tinha acabado de nascer –, entramos num caos. Quando meu irmão fez 1 ano meu pai descobriu a doença. Dois anos depois ele morreu. Durante o tratamento, fiquei muito próximo dele, cheguei a dar banho, um processo doloroso. E quando ele morreu foi uma porrada porque eu tinha certeza de que ele ia ficar vivo.

Arquivo pessoal

Com Totoro, do Porta dos Fundos (2012)

Com Totoro, do Porta dos Fundos (2012)

Como foi o dia em que ele morreu? 
Ligaram no colégio falando pra eu ir pro hospital. Chegando lá um tio me abraçou tão apertado que até me machucou. Quando vi que ele estava chorando, não precisei perguntar nada. E aí eu chorei, chorei, chorei. Quando fui ver meu pai, abracei, mas tive aquela sensação que descrevem, de que a pessoa não está mais ali. Por muito tempo fiquei mal, virei uma pessoa angustiada. Isso só acabou com um sonho em que meu pai aparecia e dizia: “Cara, não sofre. Você aí sofrendo tá me fazendo sofrer aqui”. Eu estava com uns 20 anos e só então aceitei que tinha que seguir com a vida.

E como é a relação com a sua mãe? 
Foi muito boa até a morte do meu pai. Depois, ficou um pouco estremecida. Acho que minha mãe tinha muito medo de viver como a minha avó, que morreu viúva, morando num apartamento com a irmã em Copacabana. Então quando meu pai morreu ela deu uma surtada. Trabalhava muito e manteve nosso padrão de vida, mas nossa relação pessoal se desgastou. Ela casou de novo, depois separou. Hoje é tranquilo, relação normal, de mãe e filho.

Onde era a casa de vocês? 
Botafogo. Morávamos num prédio do caralho, cheio de criança, play gigante, guerra com o prédio da frente, amigos, futebol, campeonatos de botão. Minhas memórias de infância são as melhores do mundo. Com 11 anos andava de ônibus pra onde quisesse, ia à praia.

E onde você estudava? 
No Santo Inácio, até a doença do meu pai. Aí repeti a oitava série e mudei pro Santa Rosa de Lima. Saí de um colégio de padre pra um colégio de freira. Foi a melhor coisa, conheci outros tipos de pessoas, amigos que tenho até hoje.

Você namorou muito? Era pegador? 
Nada, eu era o cara que me apaixonava, levava cartãozinho, caixa de bombons. Minha primeira vez foi no meu quarto, na minha casa, com a minha primeira namorada, que era virgem também. E foi espetacular. Enfim, chorei muito por mulher na escola. Depois de velho isso passou.

Você é mais assediado agora que é famoso? 
Não, acho que não. Primeiro que eu não sou um galã, né? Não sou o bonitinho de 26 anos, tenho 38! E até pareço mais velho. A figura da “maria comédia” eu já vi por aí. Tem umas até conhecidas, você chega num lugar e o pessoal já fala: “Olha lá a fulana, querendo descobrir qual o pau mais engraçado do Brasil”. Mas eu não entro nessa. E, como falei, tem muitos outros caras na minha frente. Muito Danilo Gentilli pra elas se interessarem [risos].

Você é casado? Tem filhos?
Dessa parte da vida pessoal, família, não falo e nunca vou falar. Prefiro ser Antonio Fagundes nessas horas.

Você é publicitário, certo? Como foi sua trajetória profissional? 
Fiz publicidade na UFRJ, uma merda de curso, mas fui até o final. Ainda na faculdade fiz estágio na Rádio Globo, indo pra rua ver cadáver no jornalismo, cobrindo vestiário de Bangu e América em Moça Bonita... De lá fui para uma agência de publicidade pequena, depois consegui estágio na programação do Multishow, maravilhoso, porque me obrigou a assistir a todos os episódios de Trapalhões, I love Lucy, Kids in the hall... esse, aliás, mudou minha vida, virou referência. Depois fui para a programação do GNT. Mas aí recebi o convite para ir trabalhar no marketing de um banco de investimentos, o Icatu, com um salário bem melhor.

Como era o trabalho no banco? Foi lá que você começou o Kibe Loco, né? 
A ideia deles era criar uma equipe de marketing jovem pra renovar a linguagem dos produtos do banco – capitalização, seguro etc. Só que não funcionou. A galera era legal, mas é aquela coisa: você faz um trabalho pra renovar a linguagem, vem alguém que manda mais e não quer mudança nenhuma. 
O negócio começou a ficar maçante. Eu todo dia de terno e gravata, logo cedo, no centro da cidade... eu tava morrendo. Então inventei o Kibe Loco. Fazia as fotomontagens zoando o time de um, o time de outro. Comecei por e-mail, depois fiz o blog e mandei pra sete caras, que replicaram entre conhecidos. Um dia, um deles me falou que a tia dele adorava o site. Estranhei: “Mas você mandou pra tua tia?”. Ele: “Não, ela viu sozinha”. Só que ela era professora no Espírito Santo. Pensei: fodeu. Achei uma ferramenta de monitoramento de audiência e descobri que o Kibe Loco tinha 12 mil acessos por dia. Passei a me dedicar mais, fingi até que existia uma equipe. Os textos diziam sempre “nós do Kibe Loco”.

E você continuou no banco? 
Não, acabei saindo do banco e fui pra outra agência, que me permitia continuar tocando o site. Foi ótimo, aprendi coisa, fiz amigos, mas era mercadão de publicidade. E eu não tenho paciência com publicidade.

Por quê? 
É frustração, é gente com ego do tamanho do mundo. Eu estudei pra ser publicitário, pra estar numa agência branquinha, bonitinha, com pufes coloridos e Macintoshs e prêmios em Cannes. Eu queria isso! Mas depois que passei por rádio, agência e caí num departamento de marketing... puta que pariu, que merda.

Se você tivesse virado um super-redator de agência, indo pra Cannes e tal, acha que estaria feliz? 
Eu ia odiar! O-di-ar. Na faculdade meu sonho era esse, mas eu não conhecia, eu tava vendo de longe. Tem uma piada ótima: sabe por que publicitário não tem campainha em casa? Pro cara chegar e bater palma! É exatamente isso. O tempo todo, um querendo mais que o outro, um lambendo a caceta do outro, ou a própria caceta... não dá, puta saco.

Você tem amigos publicitários? 
Vários, e falo o tempo todo disso com eles. Eles mesmos se sacaneiam também. Enfim, a minha carreira estava sendo um fracasso. Mas o legal é que desse fracasso eu consegui quase sem querer inventar o que me tirou de lá. Acabei largando tudo pra viver só do Kibe Loco.

Mas já dava dinheiro? E dá dinheiro hoje? 
Eu tinha recebido umas propostas de ir pra portal, tipo UOLiGBRTurbo. Em 2005 as propostas para hospedar o site eram na faixa de R$ 3.500 por mês. Dava pra eu viver. Depois passei a ganhar mais, é minha fonte de renda até hoje. Ganho para estar hospedado e com publicidade. Nada que vá me deixar milionário, mas permite manter um padrão de vida.

Kibe ainda vive muito do que as pessoas mandam? Tem uma parte autoral, mas o forte ainda vem dos leitores. Se abrir meu Google você não vai acreditar, tenho tipo 70 mil e-mails não lidos. Um dia o Gregório [Duvivier] viu minha caixa postal e falou: “Brother, achei que a minha vida era um inferno! A sua é muito pior”.

“No banco, era todo dia de gravata, logo cedo, no centro. Eu tava morrendo. Então inventei o Kibe Loco

Kibe Loco já foi acusado de se apropriar de conteúdos alheios. “Kibar” virou sinônimo de copiar. 
Isso é coisa de hater da internet. O cara fala mal porque ele queria ser você. A internet projetou muita gente que é editor de si mesmo. Você faz um Twitter, um blog e aí rola uma egotrip louca. O Twitter foi letal. A pessoa ganha 5 mil seguidores e acha que realmente está com um microfone falando para 5 mil pessoas. E não é nada disso. Sobre autoria, é assim: o cara põe um vídeo no YouTube; outro vê e joga num blog. E aí? Ninguém mais pode publicar? Você acha que porque publicou o vídeo de alguém ele é seu? Ah, vai tomar no cu, né?

Mas você responde, entra na briga? 
Não, porque é tudo o que esses caras querem. Se cem caras estão falando mal de mim na internet, quantos estão falando bem? Sério, eu não dou atenção. O Twitter é a caixa de gordura da humanidade, o chorume. Ainda bem que está perdendo força. Você vê na audiência, está caindo vertiginosamente.

Você também faz consultoria de internet pra empresas. Como é isso? 
Há uns seis, sete anos começaram a aparecer muitas agências de marketing digital, viral, essas coisas. Só que é um mercado muito mais oportunista do que especialista. O que acontecia: uma empresa contratava uma agência de publicidade padrão, essa agência contratava uma agência de mídia digital e essa mídia me ligava. Pra pôr conteúdo no Kibe Loco, ou querendo dica pra fazer uma nova “Dança do quadrado”, ou saber se tal coisa tinha cara de viral...

Jorge Bispo

Antonio Tabet

Antonio Tabet

E é possível saber que determinada coisa vai pegar? 
Não dá pra prever 100%, mas tem artimanhas que podem alavancar um conteúdo. Negociar com uma fanpage gigantesca pra que publiquem teu vídeo, negociar com um tuiteiro ou outro, um blog ou outro, isso dá um gás. Mas se ele vai virar um “Para nossa alegria” você não consegue prever. O que dá pra falar é “com isso aqui você bate a tua meta” – tipo chegar em 100 mil acessos, que o cliente já vai amar. Isso não é tão complicado.

E dá pra prever o que não vai dar certo de jeito nenhum? 
Dá, e normalmente você vê culpa do profissional de marketing na parada: o cara que, não satisfeito em ter a caneca com a marca dele aparecendo no vídeo, quer que o cara fale [pega uma caneca na mesa]: “Nossa, mas que vontade de tomar essa Duff”. Não é natural! As pessoas veem isso na TV, na internet elas não querem. Querem autenticidade.

O que era trash, pauta de sites como o seu, hoje é notícia normal de grandes veículos. Como você vê isso?
É uma coisa curiosa. Se você pegar os veículos tradicionais da internet brasileira hoje, UOLiGR7Globo.com, você vai ver que metade do que está lá na home é lixo. “Mulher Melancia canta no chuveiro. Veja o vídeo.” Isso é conteúdo pro Kibe Loco! Mas tá lá no portal. Acho que o Kibe Loco, por ter conseguido audiência com coisas trash, foi muito responsável por isso. Não sei se me orgulho ou me envergonho disso [risos].

Ter notícias bizarras virou estratégia para ganhar audiência
Sim, eles estão atrás de números, como todo mundo. Mas no meu caso não foi estratégia. Não comecei pensando “agora vou fazer um negócio que vai pautar todo mundo”. Foi válvula de escape, eu tava num trabalho chato pra caralho e precisava desopilar. Se existisse YouTube naquela época talvez eu não tivesse feito nada: quando estivesse entediado, botaria o fone de ouvido e ficaria vendo bobagem. Fiz o Kibe Loco porque não tinha muito o que fazer. Eu amava as colunas do Tutty Vasquez, do Verissimo, do Millôr. Eu podia brincar de ser esses caras.

Como você foi parar na Globo? 
Um amigo meu conhecia o Luciano Huck. Eu tinha a ideia de lançar um candidato fictício nas eleições do Rio, então pedi pra ele perguntar se o Luciano não apoiaria. Ele nos colocou em contato e o Luciano me falou: “Esquece essa história de candidato e vem trabalhar comigo”. Fiquei em dúvida. A imagem que eu tinha dele era a de um mauricinho paulista, influente, que conhece umas gostosas. Mas conversei com ele e foi surpreendente. Encontrei um cara inteligente, esperto, generoso. Ele não é meu brother, de tomar chope, mas é um cara que se eu ligo tá disponível, dá ótimos conselhos. Vai ser sempre um parceiro.

No Caldeirão do Huck você era redator?
Sim, mas redator no Caldeirão não era só entregar o texto. Você escreve, viaja pra acompanhar a gravação, volta pra ilha de edição, é muita coisa. Depois de uns três anos e pouco tive vontade de mudar de ares. O Bruno Mazzeo me chamou pra fazer o Junto e misturado, mas não fui liberado; depois me chamaram pra fazer um quadro do Fantástico e não me liberaram de novo. Um dia falei: quero fazer outras coisas. Fiz uma oficina de humor, na Globo mesmo, criando uma série que nunca foi ao ar. Depois apareceu a hipótese de uma série do Kibe Loco, também não rolou. Acabei saindo em janeiro de 2012, depois de seis anos. E em fevereiro já conversei com o Ian [SBF, hoje sócio e diretor dos vídeos do Porta dos Fundos] pra fazermos coisas juntos.

Vocês dois se conheciam da Globo? Como essa turma se juntou? 
Eu e o Ian, a gente trocava umas ideias pela internet, um conhecia o trabalho do outro e sempre falava “vamos conversar”. Um dia a gente se reencontrou e combinou de fazer o CSI Nova Iguaçu. O [Fabio] Porchat já era sócio do Ian numa produtora, contamos pra ele que a ideia era fazer um projeto assim ou assado e ele falou: “Tô dentro”. Foi a mesma coisa com o Gregório [Duvivier]. O último foi o João [Vicente de Castro], que eu conhecia de passagem. Quando eu tava saindo do Caldeirão ele tava entrando. Ele veio pra ser o cara dos contatos. É afilhado do Caetano, estava casado com a Cleo Pires, poderia conseguir participações especiais. E assim a gente se juntou.

“mostramos primeiro pra Fox, pra Sony. Então botamos na internet. E agora não queremos outra coisa”

Vocês tinham uma ideia de negócio, de como isso ia se bancar? 
Não. A gente só sabia que ia ser bom. Só de falar das ideias soltas a gente ria de se esborrachar. Então, mesmo que ninguém gostasse, a gente ia se divertir pra caralho. Na pior das hipóteses, a gente tinha o Kibe Loco. A gente calculava: se a gente coloca um vídeo por semana no Kibe Loco e ele dá um tanto de views, a gente ganha tanto de Adsense no YouTube [o serviço de publicidade do Google gera lucro baseado na quantidade de cliques ou visualizações]. Como a equipe era mínima, nas nossas contas ainda sobraria grana. Claro, todo mundo tinha seu ganha-pão em outras coisas. Mas logo as expectativas foram superadas. No nosso primeiro vídeo, um programa de 15 minutos, a gente achava que se tivesse 70 mil acessos seria um sucesso. Teve muito mais que isso [hoje, só esse primeiro programa contabiliza quase 3 milhões de views].

Não tem nenhum investidor de fora? 
Existe um boato de que o Luciano Huck é dono do canal. O Luciano nunca botou um real no Porta dos Fundos. Nem ele nem ninguém. Só a gente botou, cara.

Vocês tentaram vender o projeto para a TV? 
Mostramos o primeiro pra Fox, pra Sony. O cara da Sony falou que não tinha grana... E a Fox tinha acabado de fechar com o Rafinha [Bastos]. Então botamos na internet. E agora não queremos outra coisa.

Tem muita emissora atrás de vocês? 
Muita. O tempo todo. O louco é que a gente estava num grande veículo, e estava todo mundo meio parado. A gente teve que sair de lá, inventar outra coisa pro veículo vir dizer: “Nossa, vocês existiam!”.

A Globo? 
É, a Globo nos procurou. E também a Rede TV, e canais por assinatura. Só que a gente tá bem. A gente não fecha porta pra TV, mas só iria se não atrapalhasse o que tá acontecendo. Censurando não dá.

Como você se sente com a celebridade súbita? Seu rosto agora é conhecido. 
É muito louco. É insano. No mês passado eu estava no Lollapalooza e me senti a Xuxa. Nego gritava: “Bola azul!”; “Mario Alberto, eu quero foder!”. É estranho, você entra num restaurante e o cara ao lado sabe quem é você. Eu já era feliz de ter conseguido, com o Kibe Loco, criar um negócio a partir do nada, uma oportunidade de fazer algum dinheiro e conhecer gente. Mas o reconhecimento do Porta dos Fundos é diferente, é muito bom. Me envaidece sim. E entre os humoristas vocês também viraram “os caras”, né? Acho que é porque a gente tá fazendo o que todo mundo queria fazer. Todos estávamos trabalhando na TV, que encanta, mas que também pode virar um exercício de frustração. Eu saí da publicidade porque entendi que tudo o que eu criava em algum momento ia passar pelo crivo de gente que não sabia o que tava falando. O cara que diz sim ou não às vezes é o filho do dono da empresa. Então não é impossível você ouvir: “Ah, meu sobrinho não gostou desse vermelho, vamos trocar por azul?”. Saí da publicidade muito por causa disso. Na TV, gostava da adrenalina e tal, mas também me senti tolhido.

Antes do Porta dos Fundos, já tinha experimentado ser ator? 
Fiz curso de teatro, mas era mais pra pegar as gatinhas. Curioso é que estão me elogiando, acredita?

Quando você se assiste, acha bom? 
Eu acho que não comprometo não! E boa parte do que eu faço no Porta são roteiros que eu escrevi. Então sei exatamente o tom, é mais fácil. Pô, estou sendo chamado para fazer séries agora, acredita? Fiz uma participação em Adorável psicose, do Multishow, e me chamaram para uma da Globo, uma da Fox e uma do GNT. Posso trabalhar como ator, mas não penso nisso. Gosto de escrever e atuar no Porta dos Fundos porque é divertido. Mas, se alguém convida, significa que o que faço como ator não é uma merda! Imagina se me chamam pra uma novela da Globo? Ia ser muito engraçado.

Arquivo Pessoal

 de Super-Homem, em foto para o jornal da faculdade (1998)

De Super-Homem, em foto para o jornal da faculdade (1998)

Você vê? 
Quase nada. Futebol, UFC, que adoro. Aqui no escritório a televisão fica o dia inteiro no Discovery Channel ou no Animal Planet, porque o nosso roteirista adora. O roteiro do Quem manda, pensei vendo essa porra. Vi o macaco e pensei: “Como esse filho da puta tem a bola azul?”. E tem umas guerras, o que tem a bola mais azul manda, só ele come as fêmeas... Aí pensei na situação do pai e da garota.

Você gosta de política? Como se definiria nesse campo? 
Humor é oposição, né? Os petistas me odeiam, acham que sou tucano. Não sou. Não tenho inclinação política, só odeio ladrão, filho da puta. Nas últimas eleições [para prefeito] eu votei no [Marcelo] Freixo, e continuo do lado dele.

E nas eleições pra presidente, o que você fez? 
Votei na Marina Silva. No segundo turno, não lembro. Devo ter votado no Serra ou anulado. O Lula não dá, essa história do mensalão foi foda.

O que você acha da discussão sobre politicamente correto e humor? 
Eu acho ótimo o politicamente correto, é importante um controle. Na minha juventude cansei de ver garotos fazendo piadas com o único negro da sala e acho ótimo que não façam mais ou se sintam constrangidos em fazer. É uma evolução natural das coisas.

Mas aí toda piada vira um debate. Não é chato? 
O problema não é o politicamente correto, mas a patrulha. Essa indústria do pointing finger, o cara que fica “isso é racismo!”, por qualquer razão. Os xiitas, de todos os lados, são muito piores do que os caras que supostamente disseminam preconceito. Quem vê preconceito em tudo, até onde não há, dissemina ódio. Acende o fósforo e joga no palheiro.

Coisas como A casa dos autistas (esquete do Comédia MTV) ou a piada com Auschwitz, feita por Danilo Gentilli, deveriam ter sido evitadas? Humorista deve ter freios? 
Nesses casos, e na polêmica com o Rafinha [afastado do CQC depois de uma piada com Wanessa Camargo], os três têm direito de fazer o que quiserem. E a Wanessa tem direito de processar, a associação dos autistas idem, a comunidade judaica idem. Mas tenho pra mim que quando a coisa é bem-feita, quando é engraçado, até a parte atingida releva. Então a discussão é outra: essas piadas eram engraçadas? Casa dos autistas foi uma coisa maravilhosa? Não foi, eles mesmos falam. O que vai salvar o humor da polêmica é ele ser engraçado, ser bom. Se for ofensivo, pode até ter alguém que ria, mas muita gente não vai rir. E o que a gente busca é isto: quanto mais gente rindo junto, melhor.

Ernesto Varela, o repórter

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Ernesto Varela, o repórter fictício que perguntava aquilo que todos gostariam de saber, mas ninguém tinha coragem de perguntar, completa 30 anos e ganha um DVD com a sua história. Reunimos seus criadores, Marcelo Tas e Fernando Meirelles, para relembrar os bons tempos

Era o dia 3 de setembro de 1984, aniversário do então deputado federal Paulo Maluf. O líder do PDS, partido sucessor da Arena, de apoio ao regime militar, dava uma entrevista à imprensa em um hotel em Brasília quando surge um repórter atrapalhado, de óculos de aros vermelhos, com um bolo de chantili na mão. Ele puxa um coro de “Parabéns pra você”, provocando constrangimento geral. Em seguida, pergunta aquilo que todos gostariam de saber, mas ninguém tinha coragem de perguntar: “Deputado, muitas pessoas não gostam do senhor, dizem que o senhor é corrupto, ladrão. É verdade isso, deputado?”. Maluf olha, dá as costas e sai andando, sem responder a questão. A coletiva acaba.

A cena é um clássico de Ernesto Varela, o intrépido repórter criado pelo jornalista Marcelo Tas e pelo cineasta Fernando Meirelles, que encarnava o câmera Valdeci, seu parceiro de aventuras. Varela, o “repórter de mentira que entrevista personalidades de verdade”, estreou em um programa da TV Gazeta em 1983 e depois teve encarnações em outros canais, como SBT, Record, MTV e Globo. Em 2013, completa 30 anos de vida e, para comemorar, será lançado um DVD até o final do ano com registros preciosos de sua história, incluindo cenas da campanha pelas eleições diretas no Brasil, entrevista com o então líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva e gravações em Cuba e na União Soviética. Para encerrar a carreira do repórter, Tas prepara com o cineasta e colunista da Trip Henrique Goldman a série “Varela volta ao mundo”. “Será gravada em cinco continentes para sair em 2015”, adianta. Outro documentário sobre a produtora Olhar Eletrônico, que criou o personagem, está sendo feito pelo diretor Kiko Mollica, do Canal Brasil.

“Os militares esperaram a gente desligar a câmera, nos levaram para uma sala e falaram: ‘podem apagar tudo, seus moleques’. O Fernando fingiu que apagava, mas, na verdade, gravou a cara deles e a gente botou no ar”

Trip reuniu Tas, 53 anos, e Meirelles, 57, em um estúdio da produtora O2, em São Paulo, para falar sobre esse personagem que soube unir humor e política como ninguém. “Hoje é normal ter um repórter engraçadinho em Brasília. Vemos no Pânico ou no CQC. Mas na época da ditadura ninguém fazia isso”, diz Meirelles. No encontro, os dois criticaram a chatice e o excesso de regulamentação que imperam hoje no Brasil e que, em casos extremos, tolhem a liberdade de expressão. “Sou muito mais processado hoje do que no regime militar, e por razões muito mais ridículas. Nesse sentido, o Brasil andou pra trás”, afirma Tas. Naquele dia, ele acabava de chegar de uma audiência judicial com um mágico que se sentiu insultado pelo programa apresentado pelo humorista na Band.

Como nasceu o Ernesto Varela?
Tas: A gente tinha essa produtora chamada Olhar Eletrônico. Éramos ruins em tudo, mas pior ainda na frente da câmera. Um dia eu estava em Santos com o Toniko Melo, outro integrante do grupo, e fiz uma reportagem tirando um sarro, num tom de voz que não era o meu. Peguei emprestados uns óculos vermelhos do operador de VT e coloquei. Estava uma temperatura surreal, e eu falei sobre uma estranha variação climática na cidade. Chegamos a São Paulo e o Toniko criou uma vinheta de “Santos urgente”, como se fosse uma notícia de última hora. A gente botou no ar e o pessoal riu. O Fernando olhou e disse: “Porra, e se a gente levar esse cara para outras pautas malucas como essa?”.

De onde veio o nome?
Meirelles: Ernesto veio do repórter Ernesto Paglia. Ele foi o primeiro cara que entrevistou a gente e é meu amigão até hoje. Já Varela era um médico, amigo do meu pai. Doutor Varela era o máximo da sobriedade, um senhor de bigode que andava sempre bem-vestido.
Tas: Nossa intenção era dar um nome antigo, que desse uma credibilidade ao repórter fictício. Deu certo. Nos eventos oficiais, meu crachá vinha sempre com o nome de Ernesto Varela e não de Marcelo Tas.

O fato de o Varela ser um repórter de mentira ajudou a fazer as perguntas mais cabeludas, como aquela famosa ao Maluf sobre se ele é ladrão?
Tas: Sempre. O humor dá uma licença muito importante. Quando você joga com o humor, amplia as possibilidades e deixa as pessoas mais despidas. As perguntas do Varela pareciam sem pé nem cabeça, mas eram difíceis de responder.

Arquivo Pessoal

Tas com Meirelles na União Soviética em 1985

Tas com Meirelles na União Soviética em 1985

Como foi o episódio em que vocês foram detidos em Brasília?
Tas: Nós não tínhamos eleições diretas no país e naquele dia poderíamos ter de volta o direito ao voto. Era o dia da votação da emenda de Dante de Oliveira, em 1984. Brasília estava um tumulto. O general Newton Cruz havia fechado as entradas da cidade. A gente saiu do avião e começou a gravar na pista do aeroporto. Passamos por uma fileira de militares e eu improvisei. Falei: “O tempo aqui em Brasília está muito bom, a temperatura está muito agradável”. Os caras esperaram a gente desligar a câmera, nos levaram para uma sala e falaram: “Podem apagar tudo, seus moleques”. O Fernando fingiu que apagava, mas, na verdade, gravou a cara deles. Depois a gente editou o material e colocou tudo no ar.
Meirelles: Teve outro episódio engraçado, quando a gente entrou numa garagem e encontrou o José Sarney. O Varela o entrevistou e, no final da matéria, eu perguntei: “Quem é esse cara, Marcelo?”. Ele respondeu: “É um alagoano, acho. Roney, Andrey, algo assim” [risos]. Ele fugiu de todas as perguntas.
Tas: Olha a sabedoria do Sarney. Ele apoiava a ditadura, mas percebeu que o barco podia mudar de direção. Ele mudou junto e acabou virando presidente da República. Ele está sempre do lado de quem está no poder e é capaz de iludir até as pessoas mais inteligentes. O Sarney arrasou o Maranhão durante 60 anos, deixou a população em um estado miserável e para quê? Para ter um iate, uma ilha? E ainda vem com esse verniz de escritor intelectual.

Como foi o comício no Pacaembu em que vocês entrevistaram o Lula?
Tas: Foi o nosso primeiro furo de reportagem.
Meirelles: Tem furo ali?
Tas: Você não sabia?
Meirelles: Não. Eu lembro que aparece a Marta [Suplicy] reclamando do [Eduardo] Suplicy, mas isso todo mundo já sabia, né? Ela fala que o então marido tinha mania de política, que a política competia com ela.
Tas: Ela dizia que não sabia qual era o prazer da política. Hoje em dia tem orgasmos com a política [risos]! Eu comecei a recuperar essas imagens e descobri que são as únicas desse comício, o primeiro da campanha pelas diretas no Brasil. Temos um documento histórico, Fernando. Além do Lula, também tem o José Genoino, o Hélio Bicudo e vários líderes estudantis da época.

Vocês têm gravado o episódio em que o Varela vai atrás do empresário José Victor Oliva no banheiro da boate Gallery, em São Paulo, e pergunta como são os ricos na intimidade?
Tas: Esse episódio infelizmente eu não consegui encontrar.
Meirelles Aconteceu uma coisa tristíssima. Quando a gente tinha bastante material e achava que aquilo tinha valor, decidimos gravar numas fitas melhores. Um dos nossos sócios trabalhava na Globo e falou: “Eu posso fazer à noite lá, na surdina”. Ele pegou duas caixas com tudo o que tinha do Varela, pôs no carro, parou numa padaria e roubaram o carro dele! Com isso, perdemos um ano e meio de histórias.

“Na época do Varela, a gente chutava canela sem medo.Era possível ser contudente e não tinha advogado ligando no dia seguinte. Hoje é mais cerceado. Se tivéssemos que pagar todos os direitos autorais, não teríamos feito nada”

Vocês sofreram processos na Justiça por causa do Varela?
Tas: É curioso isso. Fui pouco processado como Varela e hoje eu sou muito mais por causa do CQC. Os processos hoje são por razões muito mais ridículas. Nesse sentido, o Brasil andou pra trás nos últimos 30 anos.
Meirelles: Não é o Brasil, é o mundo. A minha teoria é que a indústria dos advogados está fazendo tudo ficar chato. Não é possível fazer mais nada! Eles têm uma profissão chata e, não contentes em ter uma vida chata, querem que a vida de todo mundo seja chata também.
Tas: Nos Estados Unidos, essa febre de processos já passou. No Brasil, como a Justiça não funcionava, ninguém processava ninguém. Agora a Justiça ameaçou funcionar e as pessoas começaram a processar. Elas pensam: “De repente ganho uma grana com isso”.

Quantos processos você tem nas costas?
Tas: Vários, mas menos do que quando começou o programa. É um jogo, um Banco Imobiliário do Judiciário. Quase todos os candidatos processam o CQC. Por quê? Para evitar que na campanha eleitoral a gente faça uma perguntinha mais pontiaguda para ele. Isso ocorreu muito na eleição de 2008. Na de 2010 diminuiu e na de 2012, se não me engano, não houve nenhum.

Já perderam processos na Justiça?
Tas: O CQC nunca foi condenado. Pelo contrário, ganhamos vários.

“Somos todos seres humanos precários, fingindo não ser mais macacos. O humor é quando você ri dessa precariedade. Temos que estar abertos para isso”

É mais difícil fazer humor hoje?
Meirelles: É, porque você faz uma piadinha com o mágico e vai parar no tribunal por causa disso. Na época do Varela, a gente chutava a canela sem medo. Éramos sempre respeitosos, nunca xingamos ninguém, mas era possível ser contundente e não tinha nenhum advogado ligando no dia seguinte. Hoje é tudo mais cerceado. Se tivesse que pagar todos os direitos autorais, a gente não teria feito nada. Nós pegávamos um filme do Batman, copiávamos e colocávamos no ar. Não tinha que falar nada com ninguém. Ou eu filmava o cara na rua e pronto. Não tinha que levar papelzinho com autorização para assinar.
Tas: Éramos fora da lei. Para publicar esse DVD do Varela eu estou sofrendo. A gente pegava um disco dos Rolling Stones e botava na trilha. Agora tenho que ver quantos segundos tem, se aquilo está caracterizado como uma exploração do fonograma X. Cada caso será analisado e, nos mais radicais, vamos ter que criar uma trilha nova e reinserir.

O que mudou e o que continua igual na política brasileira nos últimos 30 anos?
Meirelles: Não tenho dúvida de que hoje há mais liberdade e democracia. Mas a gente sedimentou essa coisa da troca de favor, do político de aluguel. Isso sempre existiu, mas era disfarçado.
Tas: Na época da ditadura, a gente tinha uma identificação com a esquerda porque era quem estava lutando contra o regime militar. A minha decepção é que hoje essa esquerda continua vivendo naquela época, em que ou você é amigo ou é inimigo. E o mundo não é mais assim. Muitas pessoas olham o CQC com preconceito. O cara não admite que a gente possa criticar o Lula. Se você discorda dele, recebe um carimbo de que é tucano. Eu acredito que podemos ter uma interlocução com todas as forças da sociedade. Essa é a falha trágica do momento atual. A pessoa não quer conviver com quem ela discorda. Se é evangélico, não quer conviver com os gays. E vice-versa. Assim como os gays criticam o Marco Feliciano [presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias na Câmara], os gays têm preconceito em relação aos evangélicos. Acham que todo pastor é pilantra e todo evangélico é boboca. E não é. A gente tem que perceber que todos nós somos seres humanos precários, fingindo que não somos mais macacos. O humor é o momento em que você ri dessa precariedade. E nós temos que estar abertos para isso: rir dos outros e de nós mesmos.

David Tcho

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O Minotauro acima faz parte da série Lutadores, do artista sulcoreano David Tcho. Baseado em Vancouver, no Canadá,  Tcho, 32 anos, fez retratos a óleo de campeões dos ringues como Mike Tyson, Wanderley Silva e Fedor Emelianenko.

“Sempre fui fã de artes marciais. Agora elas servem como referência para a minha arte. As imagens são violentas e masculinas, mas também projetam um lado vulnerável e solitário dos lutadores”, explica.

Uma amostra desse trabalho ilustra as colunas desta edição.

Vai lá: www.davidtcho.com

Tensão e tesão

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David Tcho

Mike Tyson (óleo sobre tela)

Mike Tyson (óleo sobre tela)

É importante aceitar o conflito como natural e desejado para manter a vitalidade dos relacionamentos. A paz que promove a evolução não é a ausência do conflito e, sim, sua administração

Caro Paulo,

Harmonia é uma palavra muito perigosa. Já vi muito relacionamento acabar porque se cultivou a harmonia como ausência de conflitos e divergências. Harmonia pressupõe tensão entre opostos e diversos, e não ausência de conflitos e divergências.

Em música, diz-se que harmonia é resultado da resolução de uma tensão. A corda ou o ar que vibra produz som belo de acordo com a tensão, no caso da corda, e do atrito do ar com a matéria, no caso dos instrumentos de sopro. Sem tensão e sem conflito não há harmonia.

Nem evolução ou inovação.

Vi a solução desse problema na prática na cultura de duas empresas que são nossas clientes. E posso falar publicamente sobre isso porque são conteúdos de publicações que estão no mercado, portanto, não são confidenciais. A Toyota tem o conceito de “tensão criativa” e a Bunge trabalha a ideia de “tensão produtiva”. Ambas falam da criação de um ambiente em que se estimula a busca do aperfeiçoamento por meio da crítica constante ou do conflito. O conceito da Toyota é natural da cultura japonesa e faz mais de 2 mil anos que não é novidade. Mas o da Bunge foi criado por sua liderança agora e aqui, portanto made in Ocidente. É a busca da terceira alternativa como resultante da tensão entre duas posições ou soluções já existentes. É genial. No more “Yes-man”!

Eu chamo isso de tensão do “e”, isto é, mantém as duas partes em conflito para produzir a tensão produtiva que gera a solução que não existia antes do enfrentamento. Aí surge a solução inovadora. Diferente da tensão do “e” é o relaxamento do “ou” que promove a exclusão de uma alternativa e afrouxa a tensão da briga. Não há tensão, mas também não tem inovação.

Integração dos opostos

Aqui em casa a gente tem um ambiente que eu chamo de tensão divertida. A Lili até brinca de apelidar nossa casa de Galápagos porque cada um tem que lutar por sua sobrevivência e evolução. Tem gente que se assusta quando começa a conviver conosco, mas depois acostuma e se diverte com a tensão divertida. Aparentemente parece que não tem amor, mas é exatamente esse sentimento que garante a não ruptura e a tensão. De vez em quando alguém some por um tempo para tomar uma perspectiva da situação, mas depois volta tudo ao normal. A vida como ela é.

Acho importante aceitar o conflito como natural e desejado para manter a vitalidade das relações. E a paz. Pode parecer paradoxal, mas eu acredito que a paz duradoura que promove a evolução não é a ausência do conflito e, sim, a sua administração, vital para a saúde de cada parte e do sistema como um todo. Se queremos evitar a guerra é preciso aprender a brigar, estimular a exposição das diferenças, provocar o confronto franco dos desejos individuais versus o bem comum, enterrar de vez os discursos “pacificadores”, que negam os conflitos e acabam alimentando o cinismo virtuoso e babaca do bom-mocismo. A boa paz é tensa porque busca a integração dos opostos. Tensão e tesão. Entendeu?

Que essa paz esteja contigo, meu amigo.

Ricardo

*Ricardo Guimarães, 64, é presidente da Thymus Branding. Seu e-mail é ricardoguimaraes@thymus.com.br e seu Twitter é twitter.com/ricardo_thymus

Wikileaks das armas

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David Tcho

Wanderlei Silva (óleo sobre tela)

Wanderlei Silva (óleo sobre tela)

Hoje é possível imprimir facilmente armamentos de fogo com impressoras 3D. Não é mais preciso ir a uma loja comprar uma pistola. Basta fazer o download pela internet

O hype sobre as impressoras 3D está em toda parte. Para quem ainda não viu uma delas funcionando, trata-se da tecnologia que permite “imprimir” objetos em casa. A pessoa baixa um arquivo da internet com o design e a impressora cria o objeto a partir de uma resina plástica. É como baixar música, só que agora funcionando com coisas físicas. Uma impressora básica fabricada nos Estados Unidos custa hoje cerca de US$ 2 mil (as feitas na China podem custar menos de US$ 800).

A revista The Economist já disse que esse tipo de impressora vai levar a uma nova revolução industrial. Só que a tecnologia está gerando polêmica. Especialmente porque hoje é possível imprimir facilmente armas de fogo com elas. Não é preciso mais ir a uma loja comprar uma arma. Basta fazer o download pela internet.

Com medo dessa possibilidade, os principais sites de compartilhamento de design de objetos começaram a banir os arquivos contendo armas e seus componentes. Sites como o Thingverse, onde é compartilhado um grande número de arquivos de objetos, decidiram tirar do ar tudo o que tivesse a ver com armas de fogo (havia até componentes de rifle AR-15 para download).

Revoltado com essa decisão, um grupo chamado Defense Distributed (defesa distribuída) criou seu próprio site de compartilhamento de arquivos de armas. O projeto foi batizado de WikiWeapon, algo como WikiArma. O primeiro protótipo de pistola “popular”, pronta para impressão, foi ao ar em maio de 2013 com o nome de Liberator.

De brinquedo

Com isso, toda a discussão sobre desarmamento e controle de armas, tanto no Brasil quanto em outros países, muda completamente de figura. O controle de armas vai passar por dilemas parecidos com aqueles enfrentados por outras indústrias, como a música ou o cinema. Para controlar armas, vai ser necessário controlar a informação, algo praticamente impossível com a internet.

Além disso, a arma é toda feita de plástico (com exceção de uma pequena agulha de metal na ponta do cão). Com isso, ela não aciona a maioria dos detectores de metal. Sem contar com o fato de que se parece com um brinquedo, podendo ser feita em diferentes cores, como azul, amarelo, branco, vermelho etc.

No site do grupo Defense Distributed constam os seguintes dizeres: “O objetivo desta organização é defender a liberdade civil do acesso popular a armas, de acordo com a Constituição dos Estados Unidos, facilitando o acesso global e a produção colaborativa do conhecimento relativo à impressão de armas, além da publicação e distribuição, sem qualquer custo, dessas informações”.

Está aí uma questão que desafia qualquer controle legal ou regulatório. E que tem o potencial de mudar o mundo. Para pior.

*Ronaldo Lemos, 36, é diretor do Centro de Tecnologia da FGV-RJ e fundador do site www.overmundo.com.br. Seu e-mail é rlemos@trip.com.br

Só o silêncio salva

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David Tcho

Rodrigo Minotauro (óleo sobre tela)

Rodrigo Minotauro (óleo sobre tela)

A necessidade que as pessoas têm de se expor, seja por palavra (em blogs, por exemplo) ou por imagem (fotos e mais fotos no Instagram), expõe uma carência afetiva que entope os ouvidos e os olhos de qualquer um

O Concorde foi um avião de passageiros feito para viajar a uma velocidade maior do que a do som. Comparado com as aeronaves de hoje, e da época também, era relativamente pequeno, cabiam nele apenas cem passageiros, mas esta centena de privilegiados podia decolar de Londres e estar em Nova York quatro horas depois graças à velocidade do aparelho que podia alcançar os 2.500 quilômetros por hora. Dentro do avião, bem à vista dos intrépidos passageiros, existia um relógio digital (ficava sobre a porta de entrada no corredor da cabine) que marcava a velocidade alcançada. Se considerarmos que o som se propaga a 1.200 quilômetros por hora, não demorava muito em se ouvir o pequeno estrondo que fazia o Concorde ao furar a barreira do som.

Desde que os aviões de caça foram aperfeiçoados durante a Segunda Guerra Mundial, os engenheiros tentaram criar uma estrutura voadora que superasse a barreira do som. O Concorde começou a voar em 1976 e a sua trajetória se encerrou pouco depois que um dos aviões sofreu um trágico acidente, no qual morreram 113 pessoas.

Não sou engenheiro aeronáutico e só tive a chance de voar no Concorde uma vez, mas, se dependesse de mim, a barreira do som nunca seria quebrada. E digo mais, o respeito ao silêncio seria a 13ª norma que eu sugeriria que fosse colocada nas Tábuas da Lei, caso uma enquete pública viesse a ser feita.

Criaria, de alguma maneira, outra barreira: a do silêncio. E, acima de tudo, o ensino para que ela não fosse quebrada. Porque, sim, senhoras e senhores, sou parte destas pessoas que acham que só o silêncio salva.

O som ao redor

O cachorro do vizinho que a rua inteira ouve latir e apenas seu dono não parece perceber o quanto é irritante, o escapamento do carro (da moto, do caminhão, do ônibus) que parece estar desajustado de propósito. A música alta do empregado que se diverte sozinho na casa porque o patrão saiu de viagem e o bairro inteiro é obrigado a compartilhar. O desnaturado que pensa que repetir "pamonhapamonhapamonha” com a ajuda de um alto-falante até acordar os que estão dormindo fará com que eles desçam correndo do prédio para comprar as malditas pamonhas. Os que buzinam. Os que falam em voz alta no cinema, no ônibus, na sala de espera. Os motoqueiros de Harley que exibem sua barriga nos sábados de sol e aceleram ao cruzar com alguma menina na rua. Todos eles – e muitos outros casos mais – seriam mandados para queimar no fogo eterno.

O silêncio não só ajuda a dormir, a descansar, a pensar e a se entender, como é uma barreira invisível que, além de proteger os tímpanos, evita passar por situações constrangedoras. A necessidade que as pessoas parecem ter de se expor, seja por palavra (textos e mais textos nos blogs) ou por obra atestada pela imagem (fotos e mais fotos desnecessárias e desinteressantes no Instagram), expõe uma carência afetiva que entope os ouvidos e os olhos de qualquer um. Um amigo meu decidiu vender plaquinhas com a frase: “É muito melhor ficar quieto e parecer uma anta do que abrir a boca e deixar os outros terem certeza disso”. Se cada um tivesse ela colada ao lado do computador, o mundo seria melhor.

Porque, além do silêncio valer ouro, ele é o melhor amigo e conselheiro.

*J. R. Duran, 59, é fotógrafo e escritor. Seu Twitter é o @jotaerreduran

Musa inspiradora

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David Tcho

Emilianenco Fedor (óleo sobre tela)

Emilianenco Fedor (óleo sobre tela)

Estive aprisionado nas masmorras mais isoladas deste país. Senti na alma a necessidade de ter outras pessoas por perto. Amar uma mulher passou a ser um nobre objetivo. Ela traria em si um novo e imprevisível futuro

“A gente briga, diz tanta coisa que não quer dizer; briga pensando em não mais voltar.” Desde que eu soube o tema desta edição da revista, essa música de Jair Amorim não me sai da cabeça. Acho a letra de uma clareza absoluta. O autor foi muito feliz ao desenvolver o tema. Devia estar de fato vivendo as emoções que poetizou.

O passado é um campo de recordações e de nostalgia. A cada encruzilhada do tempo, uma nova escolha, e então um leque de possibilidades se abre à nossa frente. O futuro aparece como um feixe de projetos e esperanças. E tudo indica que somos uma tarefa a se realizar, um infindável reservatório de futuro. O presente é a fronteira entre os dois. O teatro onde se realiza a metamorfose. Uma história a ser feita que não pode ser apenas o prolongamento da história que já se fez. E é nesse contexto que nós brigamos, nos desentendemos – e, na maioria das vezes, por orgulho ou estupidez. Brigamos no presente, choramos um passado e complicamos nosso futuro.

Minhas emoções trouxeram uma brecha na couraça de minhas certezas. Sou por elas responsável, mas tudo continua sendo estranho, como se não fosse comigo. Elas me conduzem ao que há de mais desnorteante e misterioso em mim. O infinito desconhecido, essa riqueza que, de tão imensa, pressiona, desafia e enche de medo. Uma multiplicidade de possíveis que sinto que só são meus na medida em que me apaixono por eles. Eles me conduzem ao amor. Amor ao que faço, ao que idealizo e anseio realizar. Amor a uma mulher, esse outro olhar, esse conflito e, no fundo, essa dimensão perdida de mim mesmo.

“O inferno são os outros”, diria o herói de Sartre em sua peça teatral. Há momentos nesse conflito que fazem a convivência do amor parecer o inferno descrito por Dante. Outros em que a satisfação é tão imensa que tem a cara do céu ou do paraíso prometido. A felicidade é tamanha que chega a nos engolfar; dá até dor de barriga. Mas, da minha experiência pessoal, a vida é antes de tudo trabalho, dedicação e empenho. Porque nós não nos adaptamos ao meio em que fomos colocados, precisamos modificá-lo. Não estamos em equilíbrio com a natureza. Nossa vida é construção, e a convivência amorosa é produto da vontade de cada um.

Inferno são os outros

Estive aprisionado nas piores masmorras isoladas desse país. Senti na alma a necessidade das outras pessoas. Elas me faziam mais falta do que a alimentação. Sentia como se estivesse deixando vazar a substância mais valiosa da minha existência. Lia e relia aquelas letrinhas minúsculas da pasta de dentes e do sabonete. Eram as únicas coisas que me era permitido ter naquelas celas infectas. O conteúdo era industrializado, mas aquelas letras eram a única presença humana que me restava. Havia o humano impregnado naqueles signos. Foi quando descobri que o inferno, na verdade, é a ausência dos outros. Havia errado, sim, e errado muito. Mas não havia assinado contrato com o erro; sabia que um dia acertaria. Pensar, sem dúvida, é revolução. Criei coragem e comecei a mudar a história de minha vida.

Amar uma mulher, então, passou a ser um nobre objetivo, porque percebia na mulher uma nova dimensão. A companheira traria em si um novo e imprevisível futuro. Mas nem sempre consegui manter essa firmeza de pensamento, embora sempre tenha conseguido discutir e brigar. Creio que devo ter encontrado a pessoa em especial para amar. Mas algumas conjunturas minúsculas assumiram dimensões de enormes mastodontes. As brigas se sucederam, e eu me perdi de mim, dela, de meus objetivos e não soube lidar com isso. E assim a oportunidade de um encontro real foi vazando sem que eu conseguisse deter. O mais difícil é que sobrevivo à solidão, mas não consigo me acomodar a ela.

“Briga pensando que não vai voltar, eu tive orgulho e tenho por castigo a vida inteira para me arrepender. Se eu soubesse aquele dia o que sei agora, eu não seria esse ser que chora, eu não teria perdido você...” E assim termina a música que Jair Amorim fez para sua musa, Maria Helena de Abreu.

*Luiz Alberto Mendes, 60, é autor de Memórias de um sobrevivente. Seu e-mail é lmendesjunior@gmail.com


O buraco é mais embaixo

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David Tcho

Mirko Crocop (óleo sobre tela)

Mirko Crocop (óleo sobre tela)

É cada vez mais impossível um parlamentar sério emplacar uma lei que faça diferença para sua cidade, Estado ou até mesmo para o país sem que ele esteja na base aliada do executivo e se venda de alguma forma

Recentemente foram amplamente divulgadas nos jornais de São Paulo várias datas comemorativas criadas pela Câmara dos Vereadores da capital. Entre elas estão o dia dos motoclubistas, o da música cristã, o do morganti (um tipo específico de jiu-jítsu) e até o dia dos cake designers - profissionais de confeitaria especializados em criação e decoração artísticas de bolos e confeitos temáticos para festas.

Essas relevantes celebrações se juntam a outras 302 datas comemorativas do calendário oficial de eventos da cidade, todas elas criadas por leis aprovadas pelos 55 vereadores paulistanos. Destaques para o dia do árbitro esportivo (11 de setembro), o dia dos atores em dublagem (29 de junho), o dia do colunista social (8 de dezembro) e até o dia da conquista pelo Brasil de seu tetracampeonato (17 de julho).

Não é novidade para ninguém esse tipo de prática dos legislativos municipais de todo o país. Já existe até a máxima popular que diz que vereador só serve para criar nome de rua, dar títulos de cidadãos honorários a personalidades “relevantes” ou criar os tais dias comemorativos. O que falta nesse debate é uma avaliação de por que isso acontece, pois o buraco é mais embaixo.

Em qualquer Poder Legislativo os plenários são basicamente divididos entre quem faz parte da base aliada do governo e quem está na oposição. A maioria – que geralmente está do lado do governo, graças às já conhecidas barganhas – dita as regras e pauta os assuntos que realmente importam: orçamentos, planos diretores, mudanças na educação, leis de fomento etc. Tudo é decidido no gabinete do chefe do Executivo e distribuído para algum dos parlamentares aliados apresentar as propostas. Dependendo do governo, criam-se comissões, plenárias públicas para debater os temas, mas o que rola no final é a aprovação daquela determinada lei, no famoso sistema do rolo compressor.

Entretanto, como todos os representantes do povo têm que mostrar trabalho, fazem um acordão que geralmente é aprovado no colégio de líderes partidários para que todos tenham pelo menos um projeto aprovado em cada ano. Aí surgem esses bonitos projetos, que servem única e exclusivamente para agradar e aumentar as bases políticas de cada um dos representantes.

Na real, não existem discussões em plenário, debates acalorados sobre o prodigioso papel das datas comemorativas, uma situação que até constrange os parlamentares mais sérios (sim, eles existem!) e ávidos pelo tal debate legislativo de que tanto falaram na época eleitoral. Mesmo os temas mais relevantes são debatidos no velho esquema “para inglês ver”. Tudo meio de mentirinha, apenas para marcar posição.

Dá pra mudar?

A conclusão óbvia é que se torna cada vez mais impossível um parlamentar bom, cheio de boas ideias, emplacar uma lei que faça diferença para sua cidade, estado ou até mesmo para o país, sem ele estar na base aliada do Poder Executivo, sem participar do jogo dos acordos e, enfim, sem se vender de alguma forma.

Faça uma pesquisa: como anda o desempenho de seu parlamentar no que diz respeito à grande tarefa constitucional que ele tem? Ele criou alguma lei relevante, ele conseguiu cumprir as metas que fizeram você votar nele? Salvo alguns representantes muito aguerridos e bravos, que cumprem um papel de denúncia e geração de debates importantes, a maioria não chega nem perto do que deveria fazer.

Enquanto o sistema político permanecer da forma que está, teremos esse absoluto empobrecimento do papel do Poder Legislativo e ficaremos cada vez mais distantes do grande debate sobre a cidade, o estado e o país que queremos. Mas como se muda o sistema político? Por meio de novas leis que precisam ser criadas e aprovadas pelos mesmos parlamentares que vivem no maravilhoso mundo dos cake designers ou dos lutadores de jiu-jítsu. Sacou?

*Alê Youssef, 38, é produtor cultural, consultor de conteúdo e comentarista do programa Esquenta, da Rede Globo, diretor artístico do Studio RJ e presidente do bloco Acadêmicos do Baixo Augusta. E-mail: alexandreyoussef@gmail.com

Sobre o amor e a guerra

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David Tcho

Minho Chói (óleo sobre tela)

Minho Chói (óleo sobre tela)

As estratégias militares do general Carl Clausewitz serviram também para uma terapia de casal. O psicólogo diria coisas como: “a briga é um ato de violência que tenta fazer o parceiro se submeter à nossa vontade”

Carl Phillip von Clausewitz (1780-1831) foi um general prussiano que conquistou fama e respeito durante as guerras napoleônicas na Europa, lutando do lado dos que no começo apanharam bastante mas, no fim das contas, derrotaram o imperador francês. E estava em plena atividade, comandando tropas na fronteira da Polônia, quando morreu de cólera, aos 51 anos. Mas o que assegurou que o prestígio militar de Clausewitz atravessasse os séculos não foi o que ele fez no campo de batalha, e sim o que pensou e escreveu.

O livro Da guerra, que reúne as reflexões de Clausewitz, é provavelmente a mais influente obra, em qualquer tempo, a respeito de estratégia militar. Que ela fosse uma favorita de Hitler e dos generais alemães da Segunda Guerra seria esperado; mas é menos natural que estivesse entre as obras de cabeceira de Karl Marx; que servisse como uma das principais fontes para o planejamento militar de Eisenhower, Lênin e Mao Tsé-tung; que fosse mencionada entre os livros favoritos de Bob Dylan; e que, finalmente, aparecesse em inúmeras obras de ficção, de 007 a filmes de Sam Peckinpah. De tudo o que Clausewitz escreveu, o que não foi pouco, a frase mais exaustivamente citada é a afirmação de que a guerra nada mais é que a continuação da diplomacia por outros meios. Ela é menos óbvia do que parece, especialmente porque desloca, de maneira original para a época, a guerra de um âmbito essencialmente militar para um quadro mais amplo com dimensões sociais e políticas (alguns anos depois, Tolstoi, em Guerra e paz, iria na mesma direção).

Eu me lembrei de Clausewitz quando pensava no tema desta edição da Trip e comecei a viajar. Se a guerra é a extensão da diplomacia, até que ponto a diplomacia pode ser a extensão de relacionamentos pessoais? Ou, por outro lado, até que ponto relacionamentos pessoais podem causar ou evitar guerras? Os exemplos são muitos. O mais famoso, e antigo, é o da Guerra de Troia, que na mitologia original teria sido causada quando Helena trocou Menelau por Páris. Um triângulo mais recente (não exatamente “amoroso”, mas ainda assim um triângulo), mas não menos clausewitziano, teria sido aquele entre Reagan, Thatcher e Gorbatchov. E que teria, no mínimo, apressado a desmontagem do bloco soviético.

No divã

Indo ainda mais longe: se Sun Tzu pôde ser aproveitado pelos teóricos do marketing e Zen virou arte de consertar motocicletas, por que Clausewitz não poderia ser usado por psicólogos de relacionamento? Fiquei pensando num terapeuta de casais que, tendo deixado para trás Freud e Jung, se apresentasse como clausewitziano. O psicólogo em questão, diante de um casal enfrentando brigas e dificuldades em seu dia a dia, diria coisas como: “Os erros causados por boas intenções são os piores erros”; “A briga é um ato de violência que tenta fazer o parceiro se submeter à nossa vontade”; “Ao pensar em destruir o parceiro, não se deve limitar à destruição física; a destruição emocional é muito mais importante”. Caramba, pensando bem, essas frases são verdadeiras lições de vida... E daria certo? Tenho certeza que sim, e que surgiriam centenas de centros de estudo, cursos de pós-graduação e livros dedicados à terapia clausewitziana.

Afinal, deve ter funcionado direitinho com o próprio, pois tudo indica que ele teve um ótimo relacionamento com Marie, sua esposa. Foi ela quem, após a morte do general, fez com que fossem publicados os seus estudos, até então inéditos, que o promoveram do status de um bem-sucedido oficial a um dos mais importantes teóricos militares da história. E, se tudo der certo, dos relacionamentos também.

*André Caramuru Aubert, 50, é historiador e trabalha com tecnologia. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br

Adeus a um irmão

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David Tcho

Brock Lesnar (óleo sobre tela)

Brock Lesnar (óleo sobre tela)

Felipe foi o irmão mais velho que eu não tive. Ele era da gangue de hippies do Bom Retiro, que ouviam Pink Floyd e detestavam a ditadura militar. Levei um choque ao vê-lo cadavérico, com o fim da vida estampado no rosto

Eu tinha 14 anos quando comecei a idolatrar minha irmã mais velha e seus amigos, que formavam a gangue de hippies do Bom Retiro, que ouviam Pink Floyd e Milton Nascimento, que viajavam de carona para o Nordeste nas férias e que odiavam a ditadura militar. Mas é claro que nenhum deles tinha paciência para um adolescente problemático e cheio de espinhas como eu. Apesar do enorme esforço que eu fazia para ser bacana, não conseguia, de jeito nenhum, me enturmar. Até que, surpreendentemente, o Felipe, o intelectual da turma, começou a demonstrar interesse pelas minhas noias e a corresponder minha amizade.

O Felipe era muito inteligente e eclético em seu gosto. Me apresentou não só ao primeiro baseado, mas também aos livros de Jorge Luis Borges, a Jimmy Hendrix e à música clássica. Ele despertou meu interesse para muitas coisas boas. Filho único, ele morava com os pais – judeus russos que se refugiaram no Brasil depois da Segunda Guerra Mundial – na esquina da minha casa. Passei a visitá-lo quase todos os dias depois do almoço.

O Felipe não era só um grande amigo. Ele era o irmão mais velho que não tive. E eu era o seu irmão menor. Nunca dissemos isso um ao outro, mas havia esse reconhecimento tácito. Brigávamos muito. Ele podia ser o cara mais chato e pedante do mundo. E, com o passar dos anos, foi ficando também muito rabugento e intolerante. Mas, como irmãos, não questionávamos a relação. Sabíamos que o destino era estarmos assim ligados, mesmo quando frequentávamos mundos diferentes, mesmo quando fui morar fora do Brasil há mais de 30 anos e passamos muito tempo distantes.

Há seis meses eu já sabia que o Felipe estava com câncer e que, mais cedo ou mais tarde, a doença o mataria. Queria muito estar perto, mas, vivendo em Londres, tudo o que eu podia fazer era telefonar de vez em quando e pensar muito nele. Ao longo desses meses, vivi mil vezes o reencontro que, na minha imaginação, seria também uma despedida.

Velhos roqueiros

Há quatro dias cheguei a São Paulo e fui direto visitá-lo. Por mais preparado que estivesse, me esforcei muito para conter o choque ao vê-lo cadavérico, alucinando na cama, com o fim da vida estampado no rosto. Nos poucos momentos de lucidez, falamos da morte iminente, lembramos do passado, contamos piadas e nos abraçamos. Ele me disse com aquele sotaque de mano do Bom Retiro: “Porra, meu. Tô fudido e mal pago!”. Ele me mandou abrir uma gaveta ao lado da cama e disse: “Escolhe o que você quiser como lembrança”.

Peguei uma velha caneta Parker e ele disse que foi um presente que ganhou quando fez bar mitzvah. Mas ele também me deu um outro presente, um dos mais lindos que já recebi. Pediu para fazer sua barba. Me senti honrado pela intimidade. Passando a lâmina por seu rosto cadavérico, tão frágil que parecia feito de papel de arroz, senti um calor muito delicioso, uma sensação profunda de carinho. Ao ver a atenção e o amor descomunal com os quais sua esposa o tratava, enxerguei uma felicidade enorme em todo aquele horror.

Ontem ele morreu. Toda a gangue de hippies do Bom Retiro estava no cemitério. Depois de todas essas décadas, parecemos todos velhos roqueiros, destruídos pela inclemência do tempo, but never too old for rock and roll. Nem fumo mais, mas pensei que íamos fumar um depois do enterro. Não rolou. Fomos comer uma pizza na rua Prates. Foi um lindo adeus. Singelo, irônico, sentido. O Felipão merecia.

*HENRIQUE GOLDMAN, 51, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles. Seu e-mail é hgoldman@trip.com.br

Robin está chorando

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Paulo Lima:

 

Enquanto você lê este texto no sofá, no metrô ou numa cadeira de praia, o entrevistado das Páginas Negras da edição está em algum lugar úmido e quente da Colômbia, suando para encontrar pontos de contato entre as forças rebeldes das Farc e o governo daquele país. Seus conhecimentos de budismo e hinduísmo, sua formação em antropologia na Universidade de Yale, o doutorado em Harvard, as experiências com nativos em Papua Nova Guiné, com russos e chechenos, árabes e israelenses, os anos de estudos na Suíça, ou a implacável convivência com uma filha adolescente de 15 anos... Claro que todo esse cabedal de conhecimento acumulado está sendo sacado e processado, ainda que inconscientemente, a cada segundo de tensão, medo e angústia que um conflito tão entranhado e nervoso produz.

Mas Bill Ury tem em seu cinturão um troféu que pode não constar em seu currículo, mas que tende a ser ainda mais valorizado por muitos estudiosos dos eternos entreveros entre seres humanos: é um bom e genuíno amigo de sua ex-mulher.

A pergunta que não aparece na entrevista foi formulada uns dias depois, num segundo encontro menos formal. Bill jura que hoje, alguns anos depois de sua separação e do novo casamento, sua ex costuma visitá-lo trazendo inclusive o atual marido e reunindo os filhos de ambos e os que tiveram com os atuais cônjuges. Ele explica que, mesmo com todas as dificuldades, os sentimentos misturados de abandono, rejeição e frustração que invadem invariavelmente as cabeças de quem resolve romper um vínculo tão forte, os dois conseguiram não perder de vista o respeito básico e a capacidade de ouvir.

Mas por que brigamos tanto afinal?

Como Ury resumiu ao longo das três conversas que mantivemos em dias e países diferentes num mesmo mês, mais de 90% das brigas e desentendimentos nascem da não abertura de espaço genuíno para o diálogo, para entender o que de verdade motiva o outro na direção das posições que defende. O simples ato de ouvir de forma desarmada e respeitosa já resolve parte importante da tensão.

Brigar é um ingrediente da nossa natureza, sim, mas entender, ceder e perdoar parecem igualmente constar da mesma fórmula que nos explica. “Para vencer de verdade, sempre será necessário perder em alguma medida”, diz um. “O amor é a melhor arma para enfrentar a briga de estar vivo”, revela outro dos nossos interlocutores na busca ampla de respostas que resultou na edição que você tem nas mãos e que se estende às páginas da Tpm. A Trip para Mulheres deste mês dos namorados tenta responder à mesma pergunta sob a ótica feminina.

Neste momento, gritos sentidos interrompem meu raciocínio. Olho para o lado para ver de onde vêm os lamentos. Nada... Dirijo o olhar mais para baixo e encontro o dono da sirene que verte lágrimas. Meu filho de 2 anos está ali, plantado ao lado da minha cadeira. Ele chora um choro desenfreado, trajando sua fantasia de Robin com a capa amarela e empunhando uma espada de plástico emprestada de algum outro personagem. Soluçando e falando com dificuldade, ele diz algo que decifro com esforço: “A Vitóia me bateu...”.

Sua coleguinha de escola, de nome Victória, parece ter optado por solucionar o conflito pela posse transitória de um boneco da forma menos sofisticada, aplicando sem dó um jab de esquerda na barriga do garoto.

Proponho a abertura de um campo para diálogo com sua oponente. Ele chora ainda mais alto...

Onde está William Ury quando mais precisamos dele?

PAULO LIMA, EDITOR

Quem fez isso?

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Colocamos um repórter na cola do Movimento Passe Livre para tentar saber um pouco mais sobre os ativistas que pararam São Paulo e todo o país

Domingo, 23 de junho, primeiro fim de semana após o governador Geraldo Alckmin e o prefeito Fernando Haddad revogarem o aumento de R$ 0,20 nas tarifas do transporte coletivo de São Paulo. Na porta de um centro cultural no bairro do Sumaré, Caio Martins, um dos integrantes do Movimento Passe Livre (MPL), come um pão de queijo, seu almoço naquele dia. Jornalistas insistentes, mas já um tanto cansados, esperam ouvir do rapaz alguma palavra sobre os rumos do grupo disforme que, dias antes, havia catalisado a maior manifestação popular que o Brasil viu desde o impeachment de Collor.

Caio tem 19 anos e é estudante de história na USP. Franzino, usa óculos e parece gostar de manter os cabelos desorganizados. Surpreende-se com a minha chegada. “Não estávamos aguardando jornalistas”, disse. Expliquei que havia visto a chamada para a reunião de apresentação do MPL aos cidadãos na própria página de Facebook do movimento, que já reúne cerca de 280 mil fãs. Ressaltei também que havia dias tentava contato com pelo menos outros seis membros do grupo, sem sucesso. “Recebemos mais de 300 pedidos de entrevistas nesses dias e não temos como falar agora. A gente não esperava que fosse ter essa repercussão”, alegou educadamente, porém desconcertado.

Seus parceiros de movimento zanzavam de um lado para o outro, também sem se identificarem ou falarem com jornalistas. Na maioria, eram jovens, aparentando entre 18 e 25 anos. Não havia nada que os estereotipasse, como cor de pele, estatura ou vestuário. Todos trajavam a camiseta do movimento. Até era possível discernir algumas lideranças, mais pela experiência e pelo traquejo do que por cargos formais.

Em outro dia, por telefone, consegui conversar com outro integrante: Marco Magri, 27 anos, no movimento desde 2006. Segundo o rapaz, que preferiu não informar a sua ocupação, o grupo se organiza organicamente. Há membros mais assíduos e outros com participação esporádica, como o próprio, que diz se envolver mais quando há passeatas. Foi tudo o que consegui tirar dele.

Já nas ruas, encontrei com a ativista Viliane Pinheiro, também pouco disposta a liberar informações. Disse apenas que o grupo conta com cerca de 40 pessoas em São Paulo, mas que abrange outras tantas parcerias flutuantes, sendo difícil mensurar com precisão quantos membros são ao todo. Ela assegurou que o MPL opera sem financiamento externo e depende da venda de suvenires, como camisetas, e doações. Quando preciso, o grupo inclusive se articula para conseguir bancar as fianças de detidos em protestos.

“Uspianos”

É evidente a presença de uma grande parcela de jovens estudantes, muitos deles da USP, como Mayara Vivian, da geografia, e Nina Cappello, do direito, que foram à mídia falar em algumas ocasiões. Mayara, além de estudante, é garçonete no Sabiá, um boteco chique na Vila Madalena. Nina era matriculada na USP de Ribeirão Preto, mas pediu transferência para a unidade paulistana depois que conheceu o pessoal do movimento. “Ela sempre foi envolvida em assembleias, reuniões e movimentos. É muito engajada na causa. Luta e consegue empolgar facilmente qualquer um a também querer participar e lutar por seus direitos”, disse seu primo João Capello, em entrevista ao site Terra.

Além da força estudantil, o MPL conta também com a simpatia de gente como Lúcio Gregori, ex-secretário de Transportes na gestão de Luiza Erundina (1989-1992). Ele chegou a propor a tarifa zero quando estava no governo – o projeto previa a criação de um fundo que recolheria fatias de uma cobrança progressiva no IPTU. A proposta, entretanto, foi derrotada na Câmara Municipal. “A tarifa zero pode ser implementada por diversas formas. Pode ser através de um fundo, como propusemos na gestão Erundina, pode ser através da estatização, pode ser através de modelos mistos. A população tem que exigir do governo que o transporte seja gratuito, pois é um direito. E os governantes, que são os responsáveis pelo orçamento, devem propor uma solução. Dizer que não existe dinheiro para isso é uma mentira”, comentou Gregori, que costuma participar das reuniões do grupo.

Outra voz de apoio é a de Pablo Ortellado, professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da USP, que aderiu à luta pelo passe livre quando viu um embrião do movimento em ação em Florianópolis, há nove anos. “Há mais de dez anos que cidades brasileiras, jovens e estudantes fazem revoltas populares parecidas com as que estamos vendo hoje, demandando redução para as tarifas de transporte. Mas o Estado não incorporou isso à agenda política, se fez de surdo. O sistema político foi rejeitando essas mobilizações porque eram jovens, não tinham ligação com partidos”, acredita. “São jovens, mas se mostraram gigantes da política.”

O MPL nasceu meio soteropolitano, meio manezinho da ilha - foi em Salvador e Florianópolis que ele ensaiou seus primeiros passos. Em 2003, centenas de jovens e trabalhadores protestaram contra um salto no preço da passagem, coincidentemente de R$ 0,20, nos ônibus municipais da capital baiana, movimento que ganhou o nome de Revolta do Buzú. No ano seguinte, foi a vez da cidade do sul, com a Revolta das Catracas, que fechou o acesso à ilha e conseguiu reverter o aumento. Foi a partir das duas experiências que, em 2005, o MPL ganhou contorno nacional, batizado como tal na Plenária Nacional pelo Passe Livre, em Porto Alegre, durante o Fórum Social Mundial.

Rapidamente, o movimento passou a organizar encontros nacionais e formar representações em diversos estados sob a proposta de horizontalidade e apartidarismo, mantendo aproximação com movimentos populares e partidos políticos de esquerda.

“Conheci o Movimento em 2006 através de pessoas ligadas à PUC de São Paulo e à FFLCH (Faculdade Filosofia, Letras e Ciências Humanas) da USP”, conta Maurício Fleury, músico do grupo Bixiga 70. “Esses movimentos foram muito fortes no início do século e foram feitos por estudantes em geral, não apenas da classe média alta, como parte da imprensa tenta tachar. E, mesmo se fosse, isso não tiraria a legitimidade do movimento, que é suprapartidário e até supraideológico, incluindo pessoas que seguem diversas linhas de pensamento, como a marxista e a anarquista”, diz Maurício, que cita o sociólogo e humanista Carlos Moore para explicar que a revolução tem que ser feita por pessoas heterogêneas: “O racismo só vai mudar quando os brancos começarem a lutar contra ele”.

E agora?

Voltemos ao Sumaré. A querela com os jornalistas só foi ter trégua após todos concordarem com a presença da imprensa, sob restrição dela não gravar nada. A reunião findou por reforçar a meta da tarifa zero, que seria desdobrada em uma carta enviada no dia seguinte à presidenta Dilma Rousseff. O texto questionava a mandatária quanto à inclusão do transporte como direito social através da Proposta de Emenda Constitucional 90/2011, que tramita na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados.

Enquanto isso, ainda tentando entender o que é o momento que estão vivendo – assim como todos nós –, os membros do MPL permanecem de olho nas resoluções oficiais e prometem convocar novas ações em prol do objetivo que leva o nome do grupo: a passagem a custo zero. A conferir.

*Colaborou Marcos Diego Nogueira

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