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Novos Paulistanos

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De acordo com o IBGE, o número de estrangeiros vivendo no Brasil quase duplicou entre 2000 e 2010. São Paulo é, disparado, o estado brasileiro que mais recebe imigrantes. São executivos importados por megacorporações, refugiados africanos correndo de guerras e perseguições étnicas, hipsters europeus em busca da “próxima Berlim”, latinos em busca de trabalho etc. Diga “olá” para seus novos vizinhos

Ludovic Carème

Nome: Jean* - Idade: 44 anos - Origem: República Democrática do Congo - Profissão: agricultor  (*Por ser um refugiado político,  não podemos usar  seu nome verdadeiro)

Nome: Jean* - Idade: 44 anos - Origem: República Democrática do Congo - Profissão: agricultor (*Por ser um refugiado político, não podemos usar seu nome verdadeiro)

Quando a seca atingiu a província do Congo onde morava, Jean partiu, com outros agricultores, para a cidade de Goma. Iam comprar alimentos para revender na volta para casa. Dormiam todos tranquilos quando uma das várias milícias que atuam no país tomou a região de assalto e invadiu a residência em que estavam. Ordenaram a um homem que estava ao lado de Jean que entregasse os pertences. Ele negou. Foi morto com um tiro.

Um dos membros do esquadrão vinha da mesma província de Jean e, sensibilizado, resolveu ajudar o conterrâneo a fugir para a capital, Kinshasa. Jean havia “visto coisas demais” e corria risco de vida. Lá, um primo rico comprou sua passagem para o Brasil. Não deu nem para Jean se despedir da mulher e dos seis filhos. Em 16 de dezembro de 2012, aterrissava no aeroporto de Guarulhos.

 

Jean havia "Visto coisas demais" e corria risco de vida

 

Jean está instalado na Casa do Migrante, associação católica que oferece moradia para estrangeiros por até cinco meses, além de auxiliar na busca por emprego e na regularização da papelada. Falta um mês para seu tempo de permanência se esgotar. O devir é uma incógnita. “Não tenho opção. Não tenho dinheiro para ir para qualquer outro lugar”, lamenta. “Mas gosto daqui. Só acho muito estranho as pessoas não se darem bom-dia, não sorrirem umas para as outras só porque não se conhecem.”

Ludovic Carème

Nome: Francesca Wade - Idade: 29 anos - Origem: Inglaterra - Profissão: designer

Nome: Francesca Wade - Idade: 29 anos - Origem: Inglaterra - Profissão: designer

Francesca é exemplo de que aquela velha história do brasileiro que vai para o exterior “dar certo” se inverteu, pelo menos em certos casos. Depois de morar em Londres, Escócia, Noruega, Egito e Itália, foi no Brasil que a jovem inglesa prosperou. Desde que desembarcou em São Paulo, dois anos atrás, não parou um segundo. Criou um disputado workshop de criatividade, chamado Mesa & Cadeira. Fundou o estúdio multidisciplinar Todos, que, entre outras coisas, produz o festival indie Meca, no sul do país. E ainda está para lançar uma marca própria de açúcar (“Percebi que os brasileiros sempre deixam metade do pacotinho de açúcar na mesa. Resolvi então fazer um em tamanho menor”) e uma linha de produtos sobre o Rio de Janeiro para turistas.

“Na minha vida, não há diferença entre trabalho e diversão. E São Paulo é a única cidade que conheço que permite levar uma vida assim”, diz, já tirando de letra as concordâncias verbais do português. “Só aqui posso jantar à meia-noite, almoçar às 16 horas e trabalhar com um monte de coisas, em vez de uma só. Nem em Londres conseguia viver assim.”

 

"As pessoas daqui fazem tudo valer a pena. Tem muita gente querendo fazer e acontecer"

 

Francesca migrou por causa de um namorado brasileiro. O relacionamento acabou. Mas ela ficou. “São Paulo me pegou pela mão. Todo dia tinha algo para fazer. As pessoas daqui é que fazem tudo valer a pena. Tem muita gente querendo fazer e acontecer.”

Ludovic Carème

Nome: Thomas Haferlach - Idade: 32 anos - Origem: Alemanha - Profissão: produtor e DJ

Nome: Thomas Haferlach - Idade: 32 anos - Origem: Alemanha - Profissão: produtor e DJ

Ia viajar por três meses pela América Latina. Mas meu plano acabou na primeira parada. Cheguei a São Paulo e fiquei”, rememora Thomas, que “paulistou” seis anos e meio atrás. Formado em inteligência artificial em Edimburgo, na Escócia, o rapaz chegou a trabalhar na Amazon. Mas hoje ganha a vida com a Voodoohop, coletivo que fundou e que faz festas em locais inóspitos da cidade: prédios abandonados no centro, o Largo do Paissandu, o Minhocão.

“O que mais sinto falta em São Paulo é de espaços públicos, que possibilitem a troca entre as pessoas. Ninguém pisa na grama, as praças são apenas lugar de passagem”, aponta. O alemão não tardou a fazer um monte de amigos brasileiros. “Acho que, aqui, o estrangeiro é mais raro se comparado, por exemplo, com o Rio. As pessoas ficam curiosas, interessadas em você.” A seu ver, há cada vez mais gringos em São Paulo. “E quanto mais, melhor”, complementa.

São Paulo, uma cidade violenta? Ele discorda: “O brasileiro exagera um pouco, sente mais medo do que precisa. Ando no centro com laptop e nunca fui assaltado, nunca vi assalto. Na Europa, já. Tudo depende de como você se comporta”. Sobre a saúde pública, não pode dizer o mesmo. Já teve de esperar mais de 5 horas para ser atendido em um hospital. “E o médico me dispensou em 5 minutos.”


"Em São Paulo, ninguém pisa na grama, as praças são apenas lugar de passagem"

Ludovic Carème

Nome: Sebastian Dominguez - Idade: 31 anos - Origem:  Argentina - Profissão: administrador

Nome: Sebastian Dominguez - Idade: 31 anos - Origem: Argentina - Profissão: administrador

Sebastian Dominguez é um executivo de alto nível, daqueles que nem Casual Friday têm. Quando conversou com a Trip, numa sexta-feira, vestia terno – dispensou apenas a gravata. Sebá, como os paulistanos o chamam, não tem problemas em dizer que adora dinheiro. E esse foi um dos motivos que fizeram o argentino mudar-se para São Paulo. “A cidade hoje é a Nova York da América Latina. Principalmente para a área de finanças, que é a minha”, conta.


"A cidade hoje é a Nova York da América Latina. Principalmente para a área de finanças"


Formado em administração, ele trabalha na Michael Page, empresa de headhunting, encarregada de caçar talentos para outras. Era funcionário da matriz portenha e pediu para ser transferido para a paulistana. “Queria pegar essa onda de crescimento e expansão que vocês estão vivendo”, diz. Ele, aliás, não está sozinho. O escritório Veirano Advogados, um dos únicos do país a ter uma banca focada em imigração empresarial, estima aumento de 30% na demanda por autorização de trabalho para estrangeiros em relação ao ano passado.

Sebá chegou em abril de 2011. Mora, trabalha e faz academia no bairro da Vila Olímpia, distrito empresarial de São Paulo. “Vivo numa bolha, não há como negar”, confessa. Seu plano é continuar morando na cidade pelo menos até a Copa do Mundo. “Meus amigos brasileiros me falam que, nessa época, o mais seguro é eu sair do país”, brinca.

Ludovic Carème

Nome: Ninoska Monzon - Idade: 38 anos - Origem: Peru - Profissão: médica

Nome: Ninoska Monzon - Idade: 38 anos - Origem: Peru - Profissão: médica

diploma de medicina não foi suficiente para que Ninoska, Nina para os íntimos, conseguisse um bom emprego em Lima, sua cidade natal. “Na capital, os cargos médicos são todos políticos. Você precisa ser indicado por alguém”, reclama. Desesperançosa, resolveu entrar em um avião para Rio Branco, no Acre, e depois em um ônibus até São Paulo, como já haviam feito outros amigos médicos.

Sua ideia é enfrentar uma bateria de exames para revalidar a graduação para o Brasil e, depois, cursar uma especialização em dermatologia. Antes de qualquer coisa, porém, precisa achar um emprego para bancar teto e comida. As economias que trouxe já evaporaram. 
“Por enquanto, ser médica só atrapalhou na hora de conseguir um emprego aqui. Acham que não vou aceitar trabalhos mais braçais por causa disso”, diz. No momento, ela está morando na Casa do Migrante.

 

"Por enquanto, ser médica só atrapalhou na hora de conseguir um emprego aqui"

 

A impressão que teve de São Paulo até o momento não é das melhores. “A cidade é feia, malcuidada. Menos a avenida Paulista, que é linda. Fora isso, não entendo tantos indigentes na rua. O governo aqui dá tantas chances para as pessoas”, acredita. Solteira e sem filhos, gostaria de permanecer na cidade mesmo assim. “Quem sabe não trabalho ajudando pessoas como eu, aqui na Casa do Migrante.”


Mangue Town

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No coração da Vila Madalena, um dos bairros mais valorizados de São Paulo, uma favela resiste desde os anos 60 e é exemplo de uma rara convivência entre diferentes classes sociais na cidade

No alto do morro, da janela de sua casa, Manuela Maria Ribeiro tem uma das vistas mais espetaculares da Vila Madalena, zona oeste de São Paulo. Sem nenhum prédio em frente para atrapalhar a paisagem, a empregada doméstica de 63 anos observa as casinhas remanescentes da área ocupada por portugueses no início do século passado. Dona Manuela é moradora da favela do Mangue, um bolsão de pobreza encravado no coração de um dos bairros mais valorizados da capital paulista. O contraste entre os edifícios de alto padrão e os barracos do Mangue chama a atenção de quem anda pela região. A um quarteirão da casa de dona Manuela fica um dos prédios mais badalados do bairro, assinado pelo escritório Triptyque e construído pela incorporadora Idea! Zarvos. Ali o aluguel de um apartamento de 150 metros quadrados custa R$ 6.500 por mês – no Mangue, um quarto e cozinha sai por R$ 800 mensais.

Localizada entre as ruas Fidalga, Fradique Coutinho e Rodésia, a favela do Mangue existe pelo menos desde os anos 60 e abriga 22 famílias, em sua maioria de pedreiros, marceneiros, empregadas domésticas e outros trabalhadores braçais. No passado, antes da especulação imobiliária que fez multiplicar os canteiros de obras pelo bairro, estima-se que o número de moradores tenha sido o dobro. Na Secretaria Municipal da Habitação, a comunidade está cadastrada como “Favelas Fidalga 1 e 2”. “Uma fica num terreno público que foi ocupado e outra, num terreno particular. No começo dos anos 90, houve uma urbanização que levou água e esgoto e melhorou as condições no local”, explica o vereador Nabil Bonduki (PT-SP), professor de arquitetura e urbanismo da USP e morador há mais de três décadas da rua Fidalga.

O nome Mangue vem das minas de água que existem na região. Outra versão aponta para o fato de que ali se tornou uma área famosa pelo tráfico de drogas que abasteceu os bares e casas noturnas da vizinhança a partir dos anos 80. No terreno onde hoje fica um belo predinho de tijolos aparentes havia um cortiço onde nasceu o traficante Rogério Jeremias de Simone, o Gegê do Mangue, 35 anos. Preso na penitenciária de Presidente Venceslau, no oeste do estado, Gegê é apontado como o número 2 na hierarquia da organização criminosa Primeiro Comando da Capital, atrás apenas de Marcos Camacho, o Marcola. No auge dos ataques do PCC que paralisaram São Paulo em 2006, um ônibus foi incendiado na esquina da rua Fidalga com a Aspicuelta – para não deixar dúvidas de que o “partido do crime” está presente não só na periferia, mas também nas áreas centrais. “Eu lembro do Gegê quando ele era moleque. Jogava pedra na janela e pedia doces para deixar de incomodar”, conta, dando risada, Ernesto Loiola Mota, o Ceará, dono de um antiquário no Mangue.

O período de maior violência foi nos anos 80, quando o Mangue era uma espécie de território livre. “Nessa época, eu comprava fumo lá. Uma vez, um traficante me trapaceou, fiquei puto e fui tirar satisfação. Peguei umas coisas dele e disse que só devolveria se ele me desse a maconha que devia. Após um tempo, marcamos um encontro no Mangue, numa parte cheia de mato onde havia uma demolição. Quando cheguei ao local, dois caras pularam em cima de mim, me amarraram e colocaram uma faca no meu pescoço. Ficaram tomando pico a noite toda e ameaçando me matar. Eu chorei, pedi pelo amor de Deus. De manhã, consegui me soltar e fui a pé para casa. Quando cheguei, minha mulher estava desesperada”, conta um antigo frequentador do bairro, que pediu para não ser identificado.

Hoje o tráfico de drogas ainda existe, mas de maneira bem menos ostensiva. E a maioria dos moradores do Mangue – é bom deixar claro – não tem qualquer relação com o crime organizado. “São trabalhadores cujos filhos estudam em escola pública e frequentam o posto de saúde do bairro”, afirma José Luiz de França Penna, presidente nacional do Partido Verde e morador da Vila desde os anos 70.

Samba e futebol

Como toda boa favela, o Mangue tem samba, futebol e cerveja. “Aqui parece a Baixada Fluminense. 
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fim de semana, o vizinho faz churrasquinho na calçada. Coloca mesa e cadeiras de plástico, bota um som e cerveja gelada”, afirma o artista plástico Gizé, que tem um ateliê no local. Muitos moradores fazem parte da Pérola Negra, a escola de samba fundada no bairro em 1973. Já as peladas são jogadas numa quadra na vizinhança com um time que leva o nome da comunidade.

A combinação de samba e favela em plena Vila Madalena é um atrativo para os cada vez mais numerosos estrangeiros que visitam a região. “É um diferencial. Os gringos chegam aqui e acham o máximo ver o churrasquinho rolando na vizinhança”, diz a artista capixaba Adriana Duarte, a Xiclet, que há nove anos tem uma galeria em frente à favela. Segundo Xiclet, a convivência com a população do Mangue é ótima. “Logo que cheguei, tive problemas com alguns moradores que me viam como forasteira. Mas, com a convivência, tudo se resolveu e hoje existe uma troca entre a gente. Eu atraio visitantes que compram cerveja no bar deles e dão um trocado para que guardem os carros na rua. Eles me ajudam quando preciso de serviço em casa. Se a torneira quebra, vem um deles consertar”, conta Xiclet.

Os antigos moradores, no entanto, afirmam que a vida na comunidade não é mais tão animada como era no passado. “O Mangue mudou muito. Antes a gente ficava conversando na porta de casa até tarde. A molecada jogava futebol na rua todo dia. Hoje aquele pessoal ali nem põe os pés para fora”, reclama Diva Aparecida Natali, 60 anos, apontando para os vizinhos abonados das novas casas ao redor.

Junto e misturado

Parte dos habitantes do Mangue paga aluguel para os proprietários dos lotes, muitos deles de origem portuguesa. Outros ocuparam terrenos abandonados e hoje lutam na Justiça pelo direito de posse por usucapião. Muitos têm o mesmo sonho: vender suas casas a preços milionários e dividir o dinheiro entre os familiares – quase sempre muito numerosos –, para que cada um possa comprar seu imóvel próprio na periferia. “Queremos vender nossa casa. O Otávio Zarvos [dono da imobiliária Idea! Zarvos] veio aqui, mas disse que é difícil a venda porque não dá para construir prédios altos nesse trecho do bairro”, afirma dona Diva. O pedreiro Gilberto de Oliveira Doria Jr. também pretende vender o lote onde mora com os irmãos. Sobre as transformações no bairro, ele diz: “É o progresso. Quem manda aqui é o dinheiro”.

As mudanças provocadas pela febre imobiliária são criticadas pelo arquiteto Carlos Motta, que possui uma loja-ateliê na rua Aspicuelta. “A Vila Madalena perdeu muito com a invasão de automóveis e edificações que não têm o DNA do bairro e estão ajudando a descaracterizá-lo. Uma construtora compra quatro, cinco casinhas, demole e bota um prédio que faz sombra em outras casas. Mexe com o subsolo para fazer garagens e atrair ainda mais carros. Esses prédios não estão na escala da Vila Madalena. Isso não é feito de maneira natural, está forçando uma barra.”

Para Nabil Bonduki, a coexistência da favela com prédios de classe média alta é sinal de diversidade cultural. “O Mangue é o único lugar da Vila Madalena que ainda abriga população de baixa renda. Essa mistura de classes sociais é importante para o bairro e para a cidade”, afirma. Segundo o urbanista, o charme da Vila nasceu da mescla de artistas, intelectuais e estudantes da USP – que foram morar ali a partir do final dos anos 60 – com o pessoal de origem mais humilde, os serralheiros, marceneiros e pedreiros que já habitavam a área e hoje são cada vez mais raros. Motta compartilha da opinião. E conclui: “O Mangue é um dos órgãos que fazem parte desse organismo vivo que é a Vila Madalena. Por isso mesmo, não deveria deixar de existir”.

São Paulo, Brasil

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Na Lata

A festa de lançamento do projeto Trip aconteceu numa noite gelada no alto do edifício Itália, de cara para o Copan. No pequeno palco, entre as bandas convidadas, Os Inocentes gritavam pela garganta do baixista Clemente a letra inclemente de “Pânico em SP”, talvez o mais memorável sucesso do grupo protopunk forjado nas bordas da cidade. Corte para uma sala de reuniões mais de 27 anos depois. Várias semanas antes do início das manifestações classificadas como o maior levante popular dos últimos 20 anos no Brasil, um sentimento de indignação forte, apesar de não unânime, consegue convencer o grupo que pilota a revista a assumir um tema para a edição seguinte: o absoluto mal-estar que tomava conta, ainda que até então de forma mais silenciosa, da maior cidade da América Latina. Por que raios a metrópole que responde por 33% do PIB do país e que representa sozinha a terceira maior economia da mesma América Latina é incapaz de oferecer mais que uma vida tão dolorida, desgastante, insalubre, competitiva, cara e violenta aos seus pouco mais de 11 milhões de habitantes? Aqui vale mencionar que o número não é exato já que, só por causas derivadas diretamente da poluição, morrem 4 mil por ano, como se verá na matéria da página 52.

O argumento daqueles que punham a ideia em xeque na reunião eram defensáveis. Nada disso era exatamente uma novidade. São Paulo e caos são praticamente sinônimos há décadas, como aliás cantava já dizia a música quase 30 anos atrás.

Mas, mesmo assim, e com o perdão pelo uso da surrada imagem da taça à espera da última gota, teimava em permanecer no ar uma percepção forte de que aquele copo que de fato já vivia lotado havia tanto tempo, poderia estar muito perto de entornar o caldo sobre suas bordas. Foi esse sentimento da iminência de um ponto sem volta que nos levou a mergulhar no assunto que surpreendeu a nós e a todos alguns dias depois. Ruas completamente tomadas por gente vazando por todos os poros, como se fosse o líquido que, de uma hora para outra, sem que tivesse havido um fato específico detonador, transbordava mais e mais, como uma enchente que explode abrindo com força os caminhos a percorrer, capaz de desviar de qualquer obstáculo ou força que possa tentar se interpor.

O limite do suportável em São Paulo funcionou como um gatilho para fazer entornar todos os outros copos já igualmente cheios que vinham se segurando e que, numa espécie de reação em cadeia, passaram a jorrar por todo o território. Os observadores mais atentos do que fazemos por aqui notaram que há apenas três meses, em abril, dedicamos a edição 220 da Trip a observar o que chamamos de “novo ativismo”, o mesmo que o soció­logo espanhol Manuel Castells em seu novo e interessante livro preferiu batizar de “redes de indignação e esperança”. Os ainda mais ligados no nosso trabalho sabem que desde o início de 2005 vimos tratando, em cada edição da revista (e dos veículos digitais e eletrônicos que produzimos com a mesma bandeira), das causas e consequências do que classificamos como o derretimento progressivo e inexorável do modelo de organização e de vida ainda vigente, apesar de moribundo. Castells diz que o próprio conceito daquilo que entendemos por democracia não atende mais aos verdadeiros anseios do povo, ocupado que está em fortalecer os já poderosos e garantir a perpetuação de seus poderes. Ele classifica o estado das coisas prestes a transbordar como um momento de “aflição econômica, cinismo político, vazio cultural e desesperança pessoal”.

É exatamente nisso que temos procurado investir nossos recursos desde o início. Na proposição de reflexão que permita que a água, em vez de perigosamente represada, flua na melhor direção. Quando abordamos de dinheiro a alimentação, do novo ativismo às formas modernas de entendimento do cérebro, do sexo ou da educação, estamos tentando cumprir uma função que parece afinada com um dos maiores benefícios gerados por este conjunto de manifestações que rasgaram o país na segunda quinzena de junho de 2013: acordar da letargia, da acomodação, da aceitação passiva do que é dado, da injustiça, da ignorância, da gestão vagabunda que perpetua a desigualdade, da cafajestice institucionalizada, da violência banalizada (que é parte da vida diária de quem mora nas periferias paulistas desde muito antes de qualquer passeata) e da estúpida mentalidade insensível ao sofrimento e até mesmo à existência do outro que grassa em São Paulo de forma especial.

Sociólogos, avós, presidente da república, policiais, dentistas, jornalistas, antropólogos, juristas, jogadores de futebol, desempregados, manobristas e até mesmo, acredite, Fausto Silva... em poucos dias, é como se o software de todas as pessoas estivesse sendo trocado e o hardware sofrendo uma espécie de reboot, uma religada para passar a funcionar sob outra lógica, em outro ritmo, numa outra frequên­cia. Em última análise, tentando entender que diabos afinal queremos para nós e para o mundo. Que vida merecemos viver. Como queremos que sejam os próximos anos e os que virão depois...

Aqui na Trip estamos felizes porque também estamos fazendo essas perguntas. Desde quando Clemente gritou “Pânico em SP”, naquela noite fria de 1986.

Ida e Suzanne

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No topo do Copan, edifício cartão-postal de São Paulo, a dinamarquesa Ida e a francesa Suzanne se despem de tudo. “Ficar nua aqui dá uma sensação de controle sobre a cidade e ao mesmo tempo de conexão total com a vida lá embaixo”

De uma hora para outra, parece que os gringos invadiram São Paulo. Dá a impressão de que eles estão por toda parte, em todos os cantos da cidade. E, de fato, estão. Na minha casa mesmo, há três deles, incluindo eu, que sou da Patagônia, minha mulher, que é espanhola, e nossa flatmate, Suzanne, que é a francesa loira que você vê nestas fotos. Ida, a morena, é dinamarquesa e companheira de graduação na Sorbonne.

As duas ficaram melhores amigas lá, daí o clima de cumplicidade das cenas que você vê. As fotos foram feitas na sala da nossa casa, no Copan, o edifício cartão-postal de São Paulo, uma cidade feita de paulistanos por adoção (como eu, Ida e Suzanne) e de imigrantes “de todo canto e nação”, como bem diz Tom Zé, um cara que os gringos adoram.

Mas não tocava Tom Zé na agulha quando sugeri a Suzanne que ela posasse para Trip com sua melhor amiga, a Ida. Nem música rolava, na verdade. Estávamos eu e Suzanne preparando o jantar quando dei a deixa e ouvi uma resposta positiva que reverberou pela cozinha: um tropicalista e decidido “aham!”. Em seguida, veio uma confissão: “Nós duas já tínhamos falado sobre posar para você”, disse, a voz suave como a de uma menina. “Era um papo casual, falei para ela das fotos que você faz e perguntei se ela toparia”, completou. Só nos restou então marcar um dia para as fotos, um dia que não atrapalhasse a rotina de estudos das intercambistas, que estão estudando ciências políticas em uma das faculdades privadas mais tradicionais e conceituadas do Brasil.

Pois sim, meu caro, “as mina” são cabeça e corpo, unha e cutícula. Belezas sem reparos e com conteúdo. E donas de uma delicadeza envolvente. Estão sempre coladas. Vão à faculdade juntas, circulam pelo Bexiga (é lá que Ida mora) e pelo centro, vão a galerias, shows, feiras orgânicas e a muitos restaurantes. Adoram comer bem, experimentar novos sabores e acham São Paulo a cidade mais interessante domundo no momento, talvez porque tenham consciência de que a experiência que vivem hoje aqui vai marcar a vida delas para sempre. “Só fugimos do circuito Vila Olímpia, que o pessoal da faculdade adora”, diz Ida. “O melhor da cidade está no centro”, afirma Suzanne. É impossível discordar ao ver as duas despidas (de qualquer coisa) em plena marquise do Copan.

“Ficar nua aqui me dá uma sensação de controle sobre a cidade e ao mesmo tempo de conexão total com a vida lá embaixo”, disse Suzanne. Esse foi o único momento do ensaio em que eu dirigi as duas amigas em cena. Com exceção dessa imagem – coreografada como uma dança secreta (nós estávamos vendo São Paulo, mas ninguém nos via) –, todas as outras foram registros que partiram do desejo delas.

Ida está solteira. E, durante os cliques, comentou que gosta de ficar imaginando como seria ideal se existisse um homem híbrido, que unisse o tempero peculiar de um carioca com as qualidades agridoces de um turco. As duas explodiram em gargalhadas, uma mais grave, outra de uma tessitura quase infantil, ambas nem aí para o vento daquela tarde de outono. Ah, sim, no dia das fotos fazia frio. Frio para os padrões paulistanos, que fique claro. “Mas somos europeias e para nós o clima está ótimo”, rebateu Ida, com os poros arrepiados.

Como bem cunhou Paul Valéry, poeta francês, “o mais profundo é a pele”. E não cito o cara aqui só para agradar as amiguinhas intelectuais. Da pele para dentro, da pele para fora, o termômetro oscila. Pode-se sentir frio em um dia fervilhante na costa francesa e calor em pleno inverno dinamarquês. Em São Paulo, Ida e Suzanne se sentem aquecidas. O lugar onde se escolhe estar (São Paulo, Paris, Copenhague ou Comodoro Rivadavia) é sempre aconchegante. E paixão, meu amigo, é coisa de pele, eu nem preciso dizer.

Diferenciada, junta e misturada

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Vapor324

Um estudo do Mit Media Lab apontou que, quanto mais houver oportunidades de interação entre as pessoas numa cidade, maior será o seu desenvolvimento. E quanto mais diversa, tolerante e aberta for, maior será a sua capacidade de atrair talentos

O urbanista Richard Florida ficou famoso por defender uma teoria interessante para a vida e o futuro das cidades. Na sua visão, quanto mais gays houver em uma cidade, maior será o seu desenvolvimento econômico, social e, sobretudo, a capacidade de gerar inovação e atrair empresas de ponta. A presença de gays reforça a existência de uma “classe criativa” e promove um convívio urbano mais aberto, dinâmico e inteligente.

O resultado disso é atrair ainda mais pessoas criativas e, como consequência, atrair também negócios e investimento. Desse modo, como política urbana, tão importante quanto construir estádios, shoppings e grandes empreendimentos imobiliários é também atrair talentos e promover a existência de uma classe criativa. Não é por acaso que talentos globais são atraídos por cidades onde a diversidade é valorizada, como Nova York, Berlim ou São Francisco.

Florida chegou até a criar um “índice gay”, que, junto com outros índices (que medem fatores como o nível de boemia da cidade, ou de tolerância e diversidade), indica a capacidade da cidade de gerar desenvolvimento sustentável, bem como de obter prosperidade no longo prazo. Em um momento em que a competição global entre as cidades acirra-se, descuidar dessa parte é pura burrice.

Para tornar as coisas ainda mais interessantes, um recente estudo do MIT Media Lab (instituição que represento no Brasil) descobriu outra correlação. Quanto mais gente em uma cidade, mais cresce a produtividade individual de cada um. A conclusão, que poderia parecer óbvia, é na verdade surpreendente. Quando a população de uma cidade duplica, a produtividade individual de cada pessoa aumenta 130%. Ou seja, o ritmo de aumento da riqueza na cidade torna-se maior que o crescimento populacional (veja o estudo aqui: http://bit.ly/18R1FOo).

Favela e asfalto

A razão para isso é o aumento das interações “cara a cara”. Com o aumento da densidade populacional, as pessoas encontram-se mais e surgem novas ideias, planos e atividades. O estudo mediu o quanto as pessoas em uma cidade têm a oportunidade de interagir umas com as outras. E criou um índice para medir esse potencial. Não foi nenhuma surpresa quando constataram que quanto maior o índice de interações, maior é o desenvolvimento urbano.

Só tem um problema: o estudo não vale para cidades de países em desenvolvimento, como São Paulo ou Rio de Janeiro. Uma das razões para isso é que vivemos em cidades partidas. O aumento da população nas cidades brasileiras não necessariamente leva ao aumento no potencial de interação entre as pessoas. As razões para isso são várias. Dentre elas, a precariedade do sistema de transporte público. Ou ainda as barreiras econômicas e culturais que criam divisões artificiais na cidade, como favela e asfalto, ou mesmo a segregação de classes, que raramente compartilham o mesmo espaço.

Com isso, o recado dessas perspectivas urbanas é simples: quanto maiores forem as oportunidades de interação entre as pessoas na cidade, maior será o seu desenvolvimento. E quanto mais diversa, tolerante e aberta ela for, maior será sua competitividade no cenário global e sua capacidade de atrair talentos. Em síntese, quanto mais gente diferenciada, junta e misturada, melhor. Se não por razões culturais ou ideológicas, também por razões econômicas.

*Ronaldo Lemos, 36, é diretor do Centro de Tecnologia da FGV-RJ e fundador do site www.overmundo.com.br. Seu e-mail é rlemos@trip.com.br

Muito além da virada

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Vapor 324

A violência é um problema orgânico da nossa sociedade, fruto de ultrapassadas políticas sociais e de segurança pública. A Virada Cultural de São Paulo não tem nada a ver com isso.

“Quatro milhões de pessoas nas ruas, majoritariamente no centro da maior metrópole do hemisfério sul. Novecentas atrações em 88 espaços que vão de palcos ao ar livre a centros culturais. Essa é a realidade em números do maior evento realizado na cidade de São Paulo, a Virada Cultural. Se ainda há algumas pessoas achando que nos últimos dias 18 e 19 de maio testemunhamos a ‘Virada Criminal’, ou que parecia a ‘festa do arrastão’, me desculpem a franqueza, existe aqui uma carência de informação ou um exagero sensacionalista. Numa cidade em que as mazelas sociais estão expostas, e o centro da cidade reúne muitas delas, não é porque se tem Virada Cultural que se tem furtos, roubos e violência. Onde há concentração de pessoas desta ordem de grandeza, comparável ou superior à população de países inteiros do mundo, não se pode crer, à la Rousseau, que esses 4 milhões são todos exemplares seres humanos, bem intencionados, de admirável caráter e que só queiram extravasar e flanar sem provocar ou se envolver em nenhum incidente grave, como se recomenda a todos por dever e direito. A questão, portanto, consiste em desfazer o mito que tem sido aventado por alguns algozes negativistas, de que a Virada Cultural de 2013 não foi bem-sucedida.”

Danilo Miranda – Diretor do Sesc São Paulo

Ainda bem que existem vozes coerentes neste mundão de reclamações generalizadas. Ainda bem que existe bom senso para separar o joio do trigo e mostrar que a violência é um problema orgânico da nossa sociedade, fruto de ultrapassadas políticas sociais e de segurança pública, e que a Virada Cultural de São Paulo não tem nada a ver com isso. O evento é apenas mais uma vítima da realidade de insegurança já estabelecida. Imaginar o fim dele por causa da insegurança é se entregar, se render, parar de lutar e não mais acreditar na nossa cidade.

A existência da Virada Cultural é mais importante do que um show específico ou qualquer atração. Ela é um símbolo de como São Paulo poderia ser. Pessoas ocupando o lugar de carros, cultura ocupando o lugar da especulação. É um sopro de pertencimento e de valorização da real vocação criativa e artística da nossa cidade. O melhor da Virada Cultural está na experiência que a Virada proporciona. O melhor está entre os palcos, entre as instalações, nas pessoas circulando, se relacionando e redescobrindo a própria cidade. E assim deve ser sempre. O ano inteiro.

Já faz bastante tempo que tenho uma claríssima noção de que a cidade de São Paulo tem todos os elementos necessários para ser uma capital internacional da cultura e da criatividade, afinal é a cidade mais diversa do país. A força econômica atraiu muita gente de todos os cantos e de todos os tipos e o gigantismo da cidade possibilitou a coexistência de vários nichos e microuniversos. Em São Paulo não existe bairrismo e qualquer um pode chegar, empreender, se dar bem, sem nenhum patrulhamento provinciano. Esse charme cosmopolita, antenado e conectado, abre mil possibilidades criativas e acolhe muito bem a vanguarda.

Pauliceia desvairada

São Paulo é um caos urbano, e viver na cidade fica impossível se as pessoas não criarem situações de convivência e ajuda. Nesse sentido, a arte é a melhor cola, a possibilidade de liga, a verdadeira essência dessa tentativa de sobrevivência. São Paulo é feia de dia, e isso é mais um motivo para a cidade se jogar no mundão mais transgressor da arte, para transformar essa feiura em beleza, o cinza em cor. São Paulo é linda de noite, e não existe melhor ambiente para a criação e o encontro do que a boemia.

A caretice da maioria dos governantes, as políticas sociais equivocadas ou a histeria dos recalcados de plantão não podem mudar a verdadeira vocação da cidade. Pode demorar, atrasar, mas no futuro São Paulo vai bombar para o mundo inteirinho através da arte e o desenho de cidade que nasceu em 1922 vai prevalecer. O famoso empreendedorismo paulista vai direcionar o foco para a economia criativa. A pauliceia desvairada não é a dos condomínios de prédios neoclássicos, dos carros blindados e dos shopping centers de luxo. A cidade de São Paulo é muito melhor do que tudo isso. Seu DNA está na ocupação da cidade, no retorno das praças, nos eventos públicos, nos neons das ruas e no grafite dos muros.

E, para quem não concorda com nada disso, uma frase que ouvi recentemente: “Os chatos que se divirtam. Uma cidade tem que arrancar sorrisos”.

*Alê Youssef, 38, é produtor cultural, consultor de conteúdo e comentarista do programa Esquenta, da Rede Globo, diretor artístico do Studio RJ e presidente do bloco Acadêmicos do Baixo Augusta. E-mail: alexandreyoussef@gmail.com/Twitter: @aleyoussef

Só pano loco

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É como se diz, no “paulistês” das ruas, roupa boa e confortável – para viver a cidade sem abrir mão do estilo

Produção executiva Adriana Verani e Alex Bezerra / Modelo Ricardo Merine (Joy) / Make/Hair Lau Neves (Capa Mgt) / Produção de moda Patricia Grossi Bruno Pimentel / Assistente de produção Gui Takahashi e Maristela Rippel / Assistentes de foto Anderson JesusMarcos José e Vitor Jardim / Camareira Deise Gomes


Nowhere Man

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Vapor324

 

A relação que temos com a cidade pode fazer da vida da gente um projeto animado, cheio de prazeres e desprazeres, ou uma vida chata e insossa como a do pobre alienado da canção dos Beatles

Caro Paulo,

Até agora não sei o quanto uma cidade pode fazer diferença na vida da pessoa. Mas tenho certeza de que a relação que a pessoa tem com o lugar faz toda a diferença na satisfação que ela tira do dia a dia. Não se trata de fazer sucesso e ter oportunidades numa cidade grande que uma cidade menor não oferece. A internet dá uma boa zerada nessa perspectiva. Estou falando da relação que se tem com o lugar físico, com o sol que bate na janela, com o pássaro que canta nas árvores do bairro, com a umidade da tarde de verão depois da chuva, com a sujeira da rua, com o ar sujo ou limpo que se respira. São experiências sensoriais que afetam o ser humano, não importa se ele está dentro de uma Ferrari, de um táxi, de um ônibus ou se está pilotando uma bike em São Paulo, Itabirito, Nova York, Bangcoc ou Fernando de Noronha, nem se está de férias, trabalhando, roubando ou estudando.

São experiências pessoais e intransferíveis e que, por isso, podem fazer da vida da gente um projeto animado, cheio de prazeres e desprazeres, ou uma vida chata e insossa como a do “Nowhere man sitting in his Nowhere Land making all his nowhere plans for nobody”, da canção dos Beatles.

Acredito que muito da feiura e das disfuncionalidades das cidades, em particular de São Paulo, são consequência da alienação das pessoas e de uma mentalidade de cobrança de direitos e deveres. E não da busca determinada de satisfação de desejos e necessidades. O alienado eu vou ignorar. Os outros dois vale a pena comentar.

A pessoa que, de verdade, vive o lugar cata o papel que jogaram na sua rua e passa a viver no lugar limpo. O cidadão que cobra direitos e deveres espera que o caminhão do lixo passe porque ele está pagando impostos à prefeitura, que deve prestar o serviço de limpeza. Enquanto isso, vive numa rua suja. Catar o papel jogado na rua gera uma satisfação que a pessoa que passa reto nunca vai experimentar.

Rodas de conversa

Um bom exemplo de quem vive o lugar e por isso “faz a hora, não espera acontecer” é a jornalista Carolina Tarrio, que conheci no Conta Aí, uma das atividades da programação da Virada Sustentável, que aconteceu em junho em São Paulo. Conta Aí são rodas de conversa com pessoas que têm feito algo pela cidade. Carolina contou que se mudou para uma casa que ficava na frente de uma praça abandonada. Indignada com o abandono, foi falar com os vizinhos, de porta em porta, e acabou reformando a praça. Bravo, Carolina! Bom para você, para seus vizinhos e sua cidade.

Não quero desqualificar as instituições e o exercício da cidadania que as fortalece. Mas quero mostrar que a vida das pessoas funciona numa urgência que não combina com a lentidão das instituições. E que, quando a gente se acomoda no tempo das instituições, nossa vida pessoal se perde entre as reivindicações e os protocolos, nossa sensibilidade vai se anestesiando, nossa indignação vai diminuindo, a vulgaridade vai tomando conta de tudo e a insatisfação vai se tornando normal.

O que está em risco não é a cidade que, de um jeito ou de outro, no curso da história acaba se resolvendo, mas a satisfação que tiramos da nossa própria vida. “You don’t know what you’re missing”, insistem os Beatles com o pobre alienado Nowhere Man.

Eu, assim como a Carolina, me esforço e tenho conseguido fazer de São Paulo um lugar legal para eu viver. Mas... não sei se São Paulo é uma cidade boa para viver...

Meu abraço, saudades. 

Ricardo

*Ricardo Guimarães, 64, é presidente da Thymus Branding. Seu e-mail é ricardoguimaraes@thymus.com.br e seu Twitter é twitter.com/ricardo_thymus


Erros em série

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Vapor324

Uma força estranha faz com que, em São Paulo, os erros se repitam. A cidade se torna um lugar onde nada se cria, tudo se perde e nada se transforma. O tempo dirá, mas espero estar enganado

A árvore que estava disposta a cair sobre a minha casa, debilitada por suas raízes podres e descaso alheio, foi cortada. Não tenho certeza se isso aconteceu por causa de intermináveis ligações feitas, durante anos e anos, para a subprefeitura ou devido às fervorosas orações a Santo Expedito na hora em que uma chuva mais forte desabava sobre São Paulo. A incerteza de não saber se sua própria casa estará em pé no fim do dia é uma adrenalina que não desejo para ninguém.

O fato é que o perigo real e imediato sumiu. Para a minha surpresa, no lugar dela rapidamente uma outra árvore foi plantada. Uma sibipiruna que, em pouco tempo, já exibe suas folhas verdes e está subindo a um ritmo acelerado – algo que só pode acontecer em uma terra tropical abençoada por Deus e bonita por natureza. Essa é uma árvore que, de acordo com uma rápida pesquisa na internet, tem um “excelente efeito paisagístico, fornece uma sombra fresca e uma floração exuberante. Apesar do porte grande e do desenvolvimento rápido, ela é comportada e não produz raízes agressivas, sendo uma boa opção para arborização urbana, na ornamentação de vias públicas, praças e até mesmo em calçamentos”.

Fico contente em saber que a árvore é “bem-comportada”. O que não entendo é o porquê de ela ter sido plantada bem embaixo dos fios de eletricidade, telefonia e televisão a cabo que passam de um poste a outro por cima da calçada. Veja bem, meu caro leitor, se é sabido que a árvore tem um “porte grande e desenvolvimento rápido”, não é de todo errado imaginar que, dentro de alguns anos, ela vai atingir os cabos.

Lei de Lavoisier

Pode ser um vício inerente à minha profissão, mas a percepção dos detalhes é importante. Detalhes como esses – a árvore plantada embaixo do fio elétrico, a repetição do acontecimento que vai prejudicar o cidadão – falam claramente sobre como funciona o pensamento da cidade. O que me impressiona mais é a sensação de que isso é uma constante. Um movimento contínuo – a cidade não pode parar –, que não leva a lugar nenhum, porque os erros se repetem dentro de uma atitude que evidencia a falta de planejamento que, em maior escala, possa evitar a inundação nos mesmos lugares (as chuvas se repetem nos mesmos meses todos os anos) ou os engarrafamentos nos mesmos trechos de circulação. Culpar o descompasso da meteorologia ou o excesso de veículos é fácil. Difícil é se antecipar e resolver questões em atitudes que possam se tornar mais do que simples paliativos.

Lavoisier, o respeitado químico francês, estabeleceu em sua lei da conservação da matéria que, na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Uma força estranha faz com que, em São Paulo, as coisas se perpetuem e os erros se repitam. A cidade se torna um lugar onde nada se cria, tudo se perde e nada se transforma. Só o tempo pode me desmentir. Confesso que espero estar enganado.

*

PS: Escrevi dois meses atrás, neste mesmo espaço, um texto dentro do tema da revista, que era o novo ativismo, especialmente sobre o papel das mídias sociais nestes tempos de movimentos espontâneos e Harlem shakes. Deixei de acrescentar que um dos perigos da combustão digital é o da banalização das emoções. Logo, logo qualquer um poderá ser ativista por 15 minutos.

*J. R. Duran59, é fotógrafo e escritor - www.twitter.com/jotaerreduran

Terra da prosperidade

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Vapor324

Há muitos motivos para falar mal de São Paulo, mas eu escolho falar com otimismo sobre essa cidade que dá chances a qualquer um que quiser progredir. Nenhum outro local do país exibe a diversidade cultural que há por aqui

Como pode não dar certo um projeto de mais de 400 anos? Eu me recuso a aceitar que a cidade em que nasci e fui criado possa estar a um passo de sua inviabilidade. Inviável já é há muito tempo: poluição, enchentes, congestionamento de trânsito, aumento de preços, violência, e parece que aquilo que há de bom por aqui já tem dono. Tudo em São Paulo é tão complexo que chega a exceder a nossa capacidade de compreensão. Mesmo assim, a cidade está viabilizada – precariamente, admito, mas estamos aqui convivendo razoavelmente, não estamos?

Cada vez mais gente tem vindo de todos os cantos do país e do mundo. Aqui nos tornamos multirraciais, multiculturais e até multinacionais, ao mesmo tempo em que nos sentimos brasileiros. Não há como não ter a consciência de que estamos inseridos em uma metrópole global. Encontramos a pobreza que desumaniza, assim como a riqueza que desumaniza mais ainda. Mas aqui a fome é saciada, o frio é coberto e as oportunidades acontecem para quem corre atrás. Conflito e sinergia são os motores. Tradições e contradições; liberdades e prisões; cada bairro é quase uma nova cidade. Não falta nada. Convivemos com o estranho, com o diverso e até com o bizarro. Temos ONGs, Oscips, voluntários e igrejas que muito se esforçam para cobrir o que o governo deixa a desejar.

Reclamei da minha cidade durante muitos anos. Habitação e mobilidade são os nossos fracassos; desigualdade econômica e social são os nossos maiores obstáculos. Mas, quando comecei a sair e conhecer a realidade de outras cidades, parei com os meus protestos. Nelson Mandela afirma que, para conhecer um país, devemos ir às suas prisões. Porque a forma como são tratados seus piores cidadãos é o que define uma sociedade. Transpondo esse pensamento para São Paulo, a situação de nossas prisões é péssima. Principalmente em termos de superlotação, abuso de poder e mortandade de presos. Se formos ver as prisões das outras cidades, voltaremos conscientes de que aqui não é bom, mas ainda é muitas vezes melhor do que em qualquer outra cidade do país.

Gringolândia

Nenhuma cidade do país, quiçá da América Latina, tem a diversidade cultural que há em São Paulo. Nunca tantos estrangeiros vieram para cá. Múltiplos shows acontecendo ao mesmo tempo para agradar a todos os gostos; inúmeras casas de espetáculos; teatros; salões de shows e dança; shopping centers; viadutos e prédios.

Aumentou o poder aquisitivo da população, automaticamente explodiu o número de carros nas vias já supercongestionadas da metrópole. É uma loucura sair de automóvel em São Paulo, esta é a cidade dos carros. Mas somos o único local do país que está construindo um rodoanel que envolve toda a cidade e interliga todas as rodovias do estado. O metrô, aqui, embora pareça pequeno para o paulistano, é incomparável com qualquer outro no país. E estão sendo construídos monotrilhos; novas estações de metrô seguem adiante, ultrapassando até o município; linhas de trens são reativadas.

E tudo tende a mudar muito ainda nos próximos anos, haverá uma adequação às demandas. Haverá verba para tanto, não podemos esquecer que somos a cidade mais rica do país. Por exemplo, o problema das enchentes na cidade. Já existe alguma estrutura, e outras estão sendo providenciadas para segurar o pior das tempestades que se abatem sobre a cidade. São Paulo não é mais a “terra da garoa”, tornou-se a “cidade das tempestades”. Imaginem outras cidades brasileiras recebendo a mesma quantidade de chuvas que se abate sobre São Paulo. Algumas deslizariam oceano adentro.

Há muitos motivos para falar mal de São Paulo, mas eu escolho falar com otimismo e esperança sobre essa cidade que dá chances a qualquer um que por aqui chegar e quiser prosperar.

*Luiz Alberto Mendes, 60, é autor de Memórias de um sobrevivente. Seu e-mail é lmendesjunior@gmail.com

Coisa de louco

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Vapor324

São Paulo é inviável. A cidade é uma descontrolada fábrica de loucos. É grande demais, populosa demais, insustentável demais, caótica demais. Somos todos Napoleões, com mania de grandeza

Quando cruzo a Ipiranga alguma coisa acontece no meu coração. E a coisa não é boa. É algo causado, talvez, por estresse em combinação com taxas elevadas de poluentes atmosféricos. É uma sensação de viver num ambiente de insensatez generalizada, insensatez que ninguém parece enxergar. Como no caso daqueles Napoleões de hospício das histórias em quadrinhos, que se sentem perfeitamente normais, tão normais quanto o Napoleão original, o imperador – esse, bem pouco normal; afinal, quem põe na cabeça que quer e pode conquistar o mundo? É isso o que eu penso sobre a cidade de São Paulo. Ela é uma louca e descontrolada fábrica de loucos. É grande demais, populosa demais, insustentável demais, caótica demais. Caetano cantou que São Paulo ergue e destrói coisas belas. É uma meia verdade. Basta uma consulta a fotos antigas da cidade para se perceber que a conta do “destrói” é infinitamente maior do que a do “ergue”.

Eu não estou defendendo e nem romantizando as pequenas comunidades rurais. É inegável que a humanidade sempre produziu suas melhores ideias, obras de arte e da ciência no ambiente agitado das grandes cidades, e não na modorra sonolenta dos grotões caipiras. Mas tudo tem limite. Uma coisa é cidade grande e outra, muito diferente, é uma megalópole como São Paulo. Que traz água de cada vez mais longe, até mesmo de Minas Gerais, para que o paulistano possa lavar seu carro e sua calçada; que enterrou e enterra rios, riachos e várzeas; que desmatou e segue desmatando, avançando por suas bordas numa velocidade alucinante; que produz diariamente um oceano de lixo absolutamente intratável; que gera esgoto num volume apocalíptico; que coloca todos os dias mais de mil carros novos nas ruas; que não só é desigual, mas tem na desigualdade uma de suas características mais marcantes, algo de que muitos paulistanos se orgulham; que produz pessoas estressadas a ponto de cometer os mais absurdos crimes.

Multidão solitária

Uma cidade, enfim, na qual a teoria da “multidão solitária” encontra a prática. Megalópole é o que o nome diz, e São Paulo não é evidentemente a única no mundo. Mas se os otimistas gostam de nos comparar a Nova York, Londres ou Berlim, eu diria que estamos mais para Daca, Mumbai ou Kinshasa.

São Paulo tem, é evidente, aspectos positivos. Sim, são aqueles mesmos que são cantados à exaustão por seus fãs de carteirinha: cinemas, shows, teatros, museus, livrarias, bares, gastronomia variada e internacional. Mas eu mesmo (e penso que boa parte de meus concidadãos) usufruo cada vez menos de cada uma dessas coisas. Preços altos, filas, risco de assalto, trânsito congestionado... 
A livraria que mais frequento, ultimamente, é a internet. O cinema é a TV por assinatura. Meu bar predileto fica a 300 metros de casa, e não é muito diferente de qualquer bar em qualquer cidade do país. E o último show a que me animei a ir teve seus ingressos esgotados antes que meu mouse clicasse “sim”, confirmando a compra, e isso menos de 30 minutos após o início das vendas.

Platão e Aristóteles já recomendavam o controle de natalidade, pois não imaginavam que uma cidade razoável pudesse ter mais do que uns poucos milhares de habitantes. Afinal, na megalópole, até mesmo a democracia fica colocada em xeque: como um prefeito e 55 vereadores podem representar razoavelmente uma população de mais de 11 milhões de pessoas?

São Paulo é inviável. Somos todos loucos e não nos damos conta disso. Somos todos uns Napoleões, alguns de nós o do hospício, outros o imperador. Pois ambos são, como nós, loucos com mania de grandeza: do alto de nossa insensatez, nós olhamos para os habitantes de cidades menores e, com aquela tranquilidade dos que se consideram superiores, dizemos a nós mesmos que somos uns cosmopolitas muito, mas muito mesmo, especiais.

*André Caramuru Aubert, 50, é historiador e trabalha com tecnologia. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br

Rainha da madrugada

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2h05 O ônibus biarticulado da linha circular 3303-10 estaciona no Terminal Amaral Gurgel, no centro. Sobem 34 passageiros. “É gente que perdeu o horário da condução normal ou trabalha até tarde. Garçom, empregada doméstica, segurança”, explica Marcelo Braz da Silva, 47 anos. Ele é um dos condutores da Rainha da Madrugada, como é conhecida a linha mais longa de São Paulo: toda noite, percorre 103 quilômetros para ir do centro a Cidade Tiradentes, na zona leste, e voltar ao ponto de partida. Nessa viagem, vai exalando um cheiro estranho de borracha queimada. Mas, pelo jeito, podia ser pior. “Eles colocaram este ônibus novo porque sabiam que vocês, da imprensa, vinham. Normalmente é um veículo velho”, reclama a atendente Deise Alves, passageira frequente.

4h05 Depois de passar pelo Parque D. Pedro II, pegar a Radial Leste, cruzar Artur Alvim, Cidade A. E. Carvalho, Itaquera e Guaianases pegando gente, o ônibus estaciona numa rua deserta de Cidade Tiradentes. O motorista e o cobrador Aírton Carlos da Silva mal têm tempo de respirar. Fazem um xixi rápido na rua mesmo e começam o trajeto de volta. Os 41 passageiros, a maioria mulheres indo ao trabalho, aproveitam o caminho para dormir. Os assaltos já não são tão frequentes, e o único bêbado que sobe no veículo parece um velho conhecido do motorista. Também é comum subir um morador de rua, que passa a noite no ônibus para não dormir ao relento. “Em dia de jogo, show ou perto do fim de semana, a viagem é mais movimentada”, diz Aírton.

5h35 O busão da madrugada estaciona no Terminal Amaral Gurgel. No caminho, deixou trabalhadores como o garçom Douglas Oliveira, que há um ano viaja na Rainha da Madrugada até Guaianases. Já fez amigos e presenciou cenas divertidas. “Outro dia entrou uma mulher embriagada e começou a provocar as passageiras. Uma se invocou e começaram a bater boca. O pessoal abriu espaço no ônibus, lotado, só para ver elas saírem no braço. A que provocou apanhou, mas nem assim calou a boca. Sempre tem um barraco pra animar a volta pra casa.”

Sobre rodas

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Jonas Tucci

Marcelo na varanda de seu apartamento, no centro de São Paulo

Marcelo na varanda de seu apartamento, no centro de São Paulo

Um jornalista compara a vida de cadeirante em São Paulo, Londres e Nova York. Aqui a situação não é tão ruim quanto se pensa, mas o transporte público e as calçadas ainda são um obstáculo para os deficientes

Após 12 anos no exterior, entre Londres e Nova York, aqui estou, de volta à terra natal. Sou cadeirante e uma pergunta que sempre ouço é: “Não foi um baque voltar a São Paulo?”. Tenho o prazer de informar que a cidade – pelo menos a minha São Paulo, dos bairros centrais – não vai tão mal quanto se pensa, em termos de acessibilidade. De todo modo, a resposta padrão é esta: sofro um baque igual ao de qualquer um que tenha tido o privilégio de morar numa grande cidade onde não é preciso ter carro. Para os cadeirantes, e para a maioria dos mortais, optar pelo transporte público aqui é fazer da vida um inferno.

A ausência de transporte público de qualidade e as condições precárias das calçadas são o abismo que separam Sampa de Londres e Nova York. Em Londres, os ônibus rodam 24 horas e todos têm rampas. Com os investimentos olímpicos, o metrô foi em boa parte reformado para oferecer acesso. De quebra, a prefeitura te dá 1.000 libras anuais (cerca de R$ 3.300) em subsídios para andar de táxi.

Na minha escala subjetiva, Nova York está um degrau abaixo de Londres e um acima de São Paulo. Há ônibus adaptados, mas o acesso no metrô é limitado. Os elevadores quebram com frequência irritante. Você chega ao destino e não pode sair para a rua. Os táxis são outra guerra. Os motoristas não têm tempo a perder. Aqueles que não te ignoram te ajudam com impaciência.

Há cada vez mais ônibus com elevador em Sampa. O metrô é muito bem adaptado. O problema é chegar até as estações ou ao ponto de ônibus. A falta de boas calçadas talvez seja o maior impedimento à plena cidadania aos cadeirantes. Quantas vezes não me arrisco trafegando no canto da rua porque buracos ou degraus na calçada me deixam sem outra opção?

A topografia também atrapalha. Eu morava no bairro de Perdizes e passear pelas pirambeiras era uma missão impossível. É assim em grande parte da cidade. Mudei para o centro e a vida melhorou: a região é plana e pensada para os pedestres. Retomei o hábito de flanar por aí, como fazia quando morava fora. Sanduba no Bar do Estadão, cervejinha no Paribar, padoca no Arouche, exposições no CCBB, a bagunça na Roosevelt. Cruzo o viaduto 9 de Julho, e a biblioteca Mário de Andrade, reformada e acessível, é onde descubro novos autores, escrevo roteiros, preparo minhas aulas.

Ainda há muito a ser feito, mas vejo com otimismo o futuro da acessibilidade em São Paulo – e espero contribuir para que a cidade seja mais receptiva às pessoas com dificuldades de locomoção.

*Marcelo Starobinas é jornalista e roteirista, coautor do filme Jean Charles

Maior buraco

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Divulgação/Nelson Kon

Há 30 milhões de anos um asteroide caiu no extremo da zona sul de São Paulo, abrindo um buraco de 3,6 quilômetros de extensão. Nessa rara cratera urbana (são só duas, entre as 184 espalhadas pelo mundo), começou a crescer, em 1987, o bairro de Vargem Grande. Hoje, abriga 45.000 pessoas. “A rigor, esta área não poderia ser povoada. O ideal é que fosse um campo de pesquisa”, diz o geólogo e professor da USP Vitor Velasquez. Ele estuda o solo da cratera atrás de pistas sobre o clima na Terra há milhões de anos. 

O bairro já viu dias piores. “Não tinha nada aqui, só cobra e aranha. Eu vinha pra casa e chorava”, conta Marta de Jesus Pereira, 50 anos, moradora desde 1991 e presidente da Associação Comunitária Habitacional Vargem Grande. Mas as mazelas persistem, e não têm nada a ver com o buraco: falta de saneamento básico, abandono do poder público e a proximidade de uma penitenciária que, até um ano atrás, despejava detritos em área de manancial. Por causa dela, não adianta ter celular no bairro, já que não é permitido construir antena por perto.

“A gente precisa de pavimentação, hospital ou posto de saúde decente e um banco. Para pagar uma conta tem que ir até Cidade Dutra”, diz o motorista de transporte infantil Gilberto Zacaria de Lima, 45 anos. Para trabalhar no centro, os moradores enfrentam até 4 horas de ônibus. “Na época de eleição, aparece um monte de gente aqui. Depois desaparece todo mundo.”

Pelo menos uma coisa deve melhorar até 2016, para quando está prometida a criação do parque municipal na região, o Museu Aberto Cratera de Colônia. O projeto se estende por uma área de 2,4 milhões de metros quadrados e prevê a criação de um parque-museu e a reconstituição da fauna e da flora da área.

osgemeos

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Daniel Klajmic

Otávio e Gustavo Pandolfo parecem a mesma pessoa dividida em dois corpos. Até o desenho é igual. Sempre foi, desde antes de virarem OSGEMEOS e ganharem o mundo com sua arte. Para eles, é tudo uma questão espiritual: “desde os cinco anos a gente sabia que nossa missão na terra era desenhar”

"O grafite de uma cidade diz muito sobre ela.”

Otávio e Gustavo Pandolfo escutaram essa frase anos atrás do amigo e grafiteiro John Howard. Seguindo o raciocínio, São Paulo seria uma cidade repleta de seres amarelos com roupas estampadas, às vezes com balaclavas escondendo o rosto e bolsas a tiracolo. Haveria também muita cor, detalhes e texturas na paisagem. A maior metrópole do Brasil seria lúdica como os sonhos mais loucos de uma criança, como um grande painel d’OSGEMEOS. Seria, caso a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano da prefeitura não tivesse o hábito de, sistematicamente, passar uma tinta cinza por cima detudo isso.

O último grafite que a dupla fez, à luz das manifestações populares recentes que tomaram o país, não durou nem dois dias. “Na gestão anterior, fomos na prefeitura conversar. Mas não adiantou. O nosso recado tá dado. Vamos continuar falando o que temos para falar”, diz Gustavo. Falar, aliás, no caso dos dois, é sinônimo de desenhar. É com o traço, e não com as palavras, que os dois se comunicam com os familiares, com o mundo e um com o outro. Durante as quase 5 horas de papo com a Trip, os irmãos Pandolfo não soltaram a caneta e o pincel em quase nenhum momento.

Apesar de os governantes da cidade, ao que parece, não serem exatamente fãs de seu trabalho, a dupla continua passando boa parte do tempo em São Paulo. Mais exatamente no Cambuci, bairro coalhado de velhos galpões e sobrados onde Otávio e Gustavo são mais conhecidos como Tico e Teco. Lá fica o ateliê da dupla, a poucos metros da casa onde nasceram 39 anos atrás e em que foram criados pela dona de casa Margarida Kanciukaitis e pelo químico Walter Pandolfo . E também de onde viram, pela primeira vez na vida, uma turma dançar break, escutar hip-hop e fazer grafite.

Antes de ganhar a vida – e o mundo – com esta última atividade, os irmãos mergulharam de cabeça nas outras duas. Trocaram os passos de Michael Jackson, que sabiam de cor, pela “dança do robôzinho” e rimavam nos bailes, dando uma de Beastie Boys dos trópicos. Não tardou, descobriram a estação São Bento, onde a tríade break-hip-hop-grafite primeiro se manifestou no Brasil.

Foi quando Tico e Teco viraram OSGEMEOS, batizados por DJ Hum nos agradecimentos do primeiro álbum de rap nacional, Hip-hop – Cultura de rua (1988). Nem ele nem ninguém imaginava que décadas mais tarde aqueles “alemãozinhos” pintariam a fachada da Tate Modern, em Londres, a mansão de Johnny Depp, em Los Angeles, e o porco inflável dos shows de Roger Waters. Ou que montariam exposições disputadíssimas por todo o globo, assinariam linhas de lenços para a Louis Vuitton e tênis para a Nike (os lucros foram todos doados, eles dizem), e que valeriam altas cifras no mercado de arte, com quadros cotados em até US$ 200 mil.

Mas nada disso parece interessar muito aos dois gêmeos idênticos, irmãos de Adriana e Geraldo. São consequências, e eles sempre estiveram mais ligados na causa. Quando estavam em seus 20 e poucos, Otávio e Gustavo se enfurnaram no quarto e só saíram de lá quando descobriram por que e o que queriam desenhar. A resposta estava em Tritrez, um universo criado (ou acessado?) pelos dois, onde tudo que pintam no nosso mundo existe de fato. À prova de qualquer tinta cinza.

Vocês nasceram e cresceram no bairro do Cambuci? Otávio: Isso. Nesta mesma rua, algumas casas pra cima.

E hoje moram onde? O: Não moramos mais no Cambuci, é tudo que podemos falar.

Como foi crescer lá? O: O Cambuci era um bairro residencial, mas ao mesmo tempo industrial. No fim de tarde, as tiazinhas ficavam na porta de casa vendo a vida passar, ia todo mundo pra rua bater papo. Havia muitas gráficas também. Gustavo: A rua era nosso melhor brinquedo. A gente vivia fora de casa. Fazia fliperama com elástico e madeira, jogava bola, soltava pipa. O: A gente aprendeu tudo na rua. Era nossa escola. Aprendeu a respeitar. Você vê uma parede, quer pintar, mas às vezes tem um cara que mora lá. Você tem que ir trocar ideia, não dá pra chegar chegando.


"A gente nem troca muita ideia. Tá longe, mas tá perto. Sempre sabe o que o outro tá sentindo"


E na escola de verdade, como era? O: Sempre estudamos em escolas públicas. Eram todas muito boas, as mesmas onde nossa mãe estudou. Tinha até aula de francês! Cantávamos o hino todo dia. G: Engraçado que outros artistas saíram de lá, como Speto, Nina Pandolfo [esposa do Otávio], Onesto... Ficava todo mundo desenhando o tempo todo. A gente levava fotos dos grafites que fazia na rua para o professor dar nota. A linha do trem passava bem em frente à escola. Era demais: pela janela, a gente via passar os trens que a gente tinha grafitado no dia anterior.

Vocês eram bons alunos? O: A gente desenhava a aula toda. Repetimos alguns anos, mas era só por causa disso. Quando a gente tinha que estudar, estudava. Teve uma vez que um repetiu só para poder ficar com o outro, que tinha repetido. G: É! Tentavam separar a gente em salas diferentes. Teve um concurso de desenho na escola uma vez. O prêmio era uma passagem para Brasília. Foi louco: os dois ganharam, um em cada sala, com o mesmo desenho. Eu não estava vendo o que meu irmão estava desenhando, mas fizemos exatamente a mesma coisa.

O traço de vocês sempre foi parecido, então? O: É o mesmo desenho.

Vocês são daqueles gêmeos grudados? Já ficaram longe um do outro? O: Nunca. Mesmo longe, estamos perto. Sabemos o que o outro está sentindo sem nem perguntar.

Já brigaram? O: Também não. A gente nem troca muita ideia, na verdade. A gente se entende sem precisar falar.

Quanto tempo já ficaram sem se ver? G: Nunca. A gente tá longe, mas tá perto. Sempre sabe o que o outro está sentindo.

Havia alguém na família que desenhava também? O: O tio da nossa mãe, Nicanor Ferracciu, pintava bem pra cacete. Paisagens, queimadas... A mãe fazia aula com ele. O Arnaldo, nosso irmão mais velho, também sempre desenhou, inventava brinquedos. Foi o cara que segurou nossa onda, ensinou as coisas da vida. G: Na real, não sabemos muito bem por que desenhamos. Acho que é uma coisa que veio de antes de a gente nascer, meio espiritual. Nossos pais contam umas histórias e a gente vai tentando montar esse quebra-cabeça. Mas não conseguimos completá-lo ainda.

Como assim, espiritual? O: Nascemos prematuros, de sete meses. Nossa mãe só foi descobrir que estava grávida de gêmeos na hora do parto. Foi um erro médico. O doutor disse que a gente ia morrer. “Se eles vão morrer, que seja nos meus braços, na minha casa”, ela disse. G: Ela conta que quando a gente tinha 5 anos já dizia que nossa missão aqui na Terra era desenhar. E é louco, porque tem coisa que a gente faz hoje, em termos de desenho e escultura, que a gente já fazia nessa época. O: Todo mundo sabia que nosso tesão era desenhar. A gente nem trocava ideia um com o outro. Só desenhava e ficava narrando o que estava acontecendo ali no papel. Tudo tinha uma narrativa. G: A gente modificava todos os brinquedos que ganhava. Esquentava a faca no fogão e cortava tudo. Pegava caixa de sapato e fazia prédio, casinha, construía uma cidade inteira na sala de casa. Os bolos do nosso aniversário também eram muito importantes. A gente discutia o tema com nossos pais e fazia tudo junto com eles. Tinha bombeiro apagando fogo, carros, gente na rua, tudo. Quase uma maquete.


"Na escola, ficava todo mundo desenhando o tempo todo. A gente levava fotos dos grafites que fazia para o professor dar nota"


O que dessa época, exatamente, ficou no trabalho atual de vocês? O: Cara, os anos 80 eram uma época com muitos detalhes. As roupas, os aparelhos de televisão, tudo tinha muita coisa. Essa quantidade enorme de informação influenciou muito a gente. Nosso trabalho tem muito detalhe. A gente tem vontade de dizer um monte de coisa e tenta colocar tudo ali.

Como o grafite entrou na vida de vocês? G: Quando conhecemos a cultura hip-hop, por volta de 85. Pouca gente sabe disso, mas ela era bem forte no Cambuci. Tinha a turma do Fantastic Break, os primeiros caras que vimos fazendo grafite e dançando break. O que pegava antes era dançar igual ao Michael Jackson. Aí, depois, a onda era a dança do robozinho, o break. Começamos a treinar sem parar. Ficamos bons, fazíamos até apresentação nas festinhas de aniversário. E começamos a fazer uns raps também. O: Saíram os filmes Beat Street e Breakin [ambos são de 1984], que falavam sobre esse universo, sobre o que estava rolando em Nova York e em outros centros do mundo. Fomos assistir aos dois em um cinema no centrão. Mano, foi uma injeção de informação aquilo. Vimos as roupas, o som, tudo. Todo mundo pirou. Queria se vestir igual aos caras, usar tênis Nike, Puma...

Mas vocês tinham grana pra isso? O: Nada. Nossa avó era costureira. A gente comprava o tecido e falava para ela fazer um agasalho, por exemplo. Ou fazia rolo com gente que tinha acabado de voltar de fora. G: A gente chegava a bordar o símbolo da Nike nos tênis!

Quando rolou o primeiro spray, o primeiro grafite, mesmo? O: Depois que vimos o pessoal usando no bairro, imploramos pra nossa mãe comprar uma lata pra gente. Mudou nossa vida. Pintamos nosso quarto, depois o jardim, depois o telhado, depois os telhados dos vizinhos. A gente teve essa preocupação de aprender o negócio antes de ir pra rua mesmo.

Era uma mãe moderna, não? Dar um spray para uma criança naquela época não devia ser comum... O: Grafite era uma coisa muito nova, não tinha nem essa conotação de vandalismo ainda. Eu lembro que a gente andava horas na linha do trem só pra ver um grafite. Chegava lá, tirava foto e depois ainda ficava dias admirando a fotografia.

Os tempos eram outros... G: Completamente. A gente ia na biblioteca municipal e folheava um monte de livro e revista só para ver uma foto de grafite, que muitas vezes aparecia só no fundo da foto. Quando alguém descolava uma revista especializada, ficava todo mundo meses mergulhado naquilo, analisando cada detalhe.

Vocês lembram qual foi o primeiro desenho que fizeram na rua? O: Acho que escrevemos “crime” e fizemos um personagem. Isso foi só uns dois, três anos depois que ganhamos nossa primeira lata. Lá por 86, 87.

E a estação São Bento (berço do hip-hop em São Paulo), vocês frequentavam? O: Porra, a São Bento era indescritível! Um lugar mágico. De longe, você já escutava o som. O coração disparava, os pelos arrepiavam. Nosso pai que levava a gente lá, quase todo fim de semana. A gente tinha 14 anos, o resto do pessoal tinha 20. G: Era uma realidade paralela, o tempo corria diferente. Tinha a coisa de você respeitar, mas ser respeitado também. Ter humildade, mas saber chegar. E nós éramos uns alemãozinhos no meio de um monte de negão. Mas a gente chegou no estilo, com as jaquetas já grafitadas, já sabendo uns passos de break. A galera recebeu bem. O primeiro cara que conhecemos foi o Thaíde [rapper e apresentador de TV]O: Foi aí que começou essa coisa de pintar na rua aos domingos. De dia mesmo. Isso foi muito importante para a cena do grafite brasileiro. Até hoje domingo é o dia do grafite.

E a polícia não ligava? G: Ligava muito! Era repressão total, estávamos na ditadura ainda. Todo mundo morria de medo da polícia. Você tinha que sempre ter RG no bolso, se não, ia pra delegacia. Hoje é diferente. O cara te aborda e, se bobear, vai pedir para você pintar a viatura dele.

Vocês viviam então de rap, break e grafite, basicamente... O: Não só. A gente trabalhava desde os 14 anos. Primeiro numa funilaria, onde era ótimo para conseguir tinta. Depois numa fábrica, lavando picles, numa locadora... Chegamos a ser boys em um banco. Mas não tínhamos futuro nenhum ali, era claro. Isso de trabalhar com outras coisas só nos deu mais certeza de que o que queríamos mesmo era desenhar. Chegou uma hora que não dava mais para fazer outra coisa que não fosse isso. Pedimos demissão e resolvemos que íamos tentar viver da nossa arte. Aí começou, talvez, o período mais especial da nossa vida. Ficamos praticamente trancados na casa da mãe, pintando sem parar por uns três anos. Aprendemos a usar aerografia, aquarela, tinta a óleo... Fomos atrás do nosso estilo. Encontrá-lo era o que mais queríamos na vida. Varávamos a noite ouvindo Afrika Bambaata, Led Zepellin e Pink Floyd, tomando vinho e pintando à luz de velas. G: Era tipo uma meditação.

Por que à luz de velas? O: Porque tudo que pudesse desviar nossa atenção, nós descartávamos. Vinha visita lá em casa e a gente nem dava oi. Descia só pra comer, às vezes nem isso. A gente queria saber por que a gente preferia desenhar a qualquer outra coisa. A gente escrevia muito nessa época, tipo um diário. Escrevia sobre o nosso desenho, para poder encontrar ele. Até que se abriu uma janela. E nós vimos tudo.

Parece a descrição de uma revelação divina. G: E foi. Cada dia a gente via mais um pouco desse mundo. Era só fechar o olho, parecia um filme. Uma coisa espiritual mesmo. Um dia a gente resolvia como seria o nariz dos nossos personagens, no outro, a perna. Foi indo.

É esse mundo que vocês chamam de Tritrez? O que significa esse nome? G: Começamos a estudar nossa vida, e muita coisa tinha a ver com os números três e 32. Não vou te contar mais nada porque isso é uma coisa muito íntima nossa. É algo muito complexo, de onde vem tudo o que a gente faz. Na real, só de ter descoberto esse universo já estava ótimo. Resolvemos desenhar para dividir ele com as outras pessoas.

Outras pessoas podem acessar Tritrez? G: Cada um tem o seu próprio Tritrez. Mas muitos não têm coragem de mexer nele. É um abismo, dá medo mesmo. Nós temos medo até hoje. É difícil se jogar. Demanda desgaste físico e mental, criação, recriação...

E por que os seres que vivem lá são amarelos? O: São Paulo é muito cinza. Mas a gente não queria, não conseguia ver a cidade desse jeito. O amarelo veio dessa época em que a gente estudava na casa da mãe. A gente gostava de desenhar principalmente no fim da tarde, quando o céu ficava laranja. O amarelo é uma tentativa de reproduzir essa luz que entrava pela janela. G: Desmembramos o laranja em amarelo e vermelho, que também é muito presente no nosso trabalho. O contorno dos nossos desenhos não é preto, é vermelho bem escuro.

De certa forma, Tritrez parece ser outro nome para inspiração, talvez até para Deus. Vocês acreditam nele? G: Acreditamos nesse nosso universo. Acreditamos em Deus também. Mas não seguimos nenhuma religião.

Quando o trabalho autoral começou a dar grana? O: Antes, passamos a pintar fachada de loja de skate, fazer ilustração para uma revista. Mas era osso. Cada trampo que rolava era uma festa, nossa mãe ia lá ver toda orgulhosa. G: Nosso trabalho autoral mesmo começou a ser mais reconhecido quando um grafiteiro americano que a gente amava, o Barry Mcgee, veio para São Paulo fazer uma residência artística. Ele viu um grafite nosso na rua, gostou e ligou pra gente. Na época a gente botava o telefone nos desenhos [risos]! Foi nosso primeiro contato com um grafiteiro de fora. Piramos. O: Daí o Barry falou do grafite brasileiro para um amigo que tinha uma revista gringa superimportante sobre arte de rua. A revista veio até São Paulo fazer uma matéria, passou um tempo na nossa casa. Depois, outro artista alemão, o Loomit, veio também. Curtiu nosso trampo e nos chamou para expor em Munique, na Alemanha. Isso era 1999, mais ou menos.


"No começo, todo mundo morria de medo da polícia. Hoje é diferente. O cara te aborda e, se bobear, vai pedir para você pintar a viatura dele"


A porta das galerias se abriu antes lá fora, então? O: Pois é. Em 2000, engatamos outra exposição em San Francisco, na Califórnia, numa galeria que lançou um monte de nomes foda da artes. Depois rolou outra em Nova York, na Deitch Gallery. Entre 2000 e 2005, fizemos muitas exposições e projetos fora do Brasil. G: Engraçado que, no começo dessas viagens, a gente se preocupava muito em fazer nosso trabalho exatamente do jeito que fazíamos no Brasil. A gente levava lata de Colorgin no avião [risos]! Chegamos lá e nos deparamos com lojas só de tinta, spray de tudo quanto é cor, escola de grafite... um outro mundo. Ninguém entendia como a gente podia usar nossos sprays, diziam que a tinta era muito aguada. E não entendiam também como a gente usava tinta látex em grafite. Pra gente, fazia todo o sentido: era mais barata e secava mais rápido.

Batia um desapontamento por ter bombado primeiro fora do Brasil? O: Não. A gente pensava: “Se neguinho não viu a gente, não viu. Paciência”. Nos preocupávamos mais em trabalhar com o mercado que se abriu pra gente. Até que a Márcia Fortes, sócia-diretora da galeria Fortes Vilaça, ficou sabendo da gente e nos chamou pra fazer a primeira exposição no Brasil.

Vocês separam o trabalho que fazem na rua e nas galerias? O: Completamente. Grafite é ilegal, é pintar sem perguntar nada para ninguém. O universo da arte contemporânea é outra coisa, não dá pra misturar. G: Usamos técnicas semelhantes nos dois, mas não chamamos de grafite o que fazemos nas galerias.

O picho então também não pede permissão para nada. A diferença para o grafite é apenas estética? O: Desculpe, mas não falamos sobre picho.

Vocês acham que a arte contemporânea abraça os artistas que vêm da rua? G: Não sei se existe preconceito na arte contemporânea. Mas vejo cada vez mais artistas que vieram das ruas indo para as galerias.

Na visão de vocês, como está o grafite brasileiro atualmente? O: Tem e sempre teve muita gente boa. Aqui temos uma vantagem de poder ir na rua num domingo e pintar na cara de todo mundo. Se você faz isso em Nova York é preso em 2 minutos.

Suas exposições costumam agradar a pessoas com idades e backgrounds completamente distintos. Por quê? O: Nossa arte é muito simples. Não tem explicação, conceito. Na real, tem muito. Se quiser, a gente escreve um livro para cada tela que a gente pinta. Mas não precisa. Queremos mexer com o imaginário das crianças, dos senhores de idade, de todo mundo. A gente quer que a pessoa sinta antes de entender. G: Essa coisa de exposição é muito louca pra gente. Ainda é. Abrimos portas que pareciam que sempre estariam fechadas pra gente. Ver o número de pessoas que vai ver o que a gente faz é muito forte. É uma quantidade de público que não existe muito na arte contemporânea. De repente, mostramos pra um moleque que está começando na rua que há um mercado pra ele, que ele pode viver com o trampo dele.

Falemos de São Paulo. Qual a leitura que vocês fazem da cidade hoje? G: Uma das coisas mais legais daqui é que não tem praia. Faz a gente pegar outros tipos de onda. E aprender a surfar nelas, todo dia. O: Cara, acho que São Paulo piorou. Está mais violenta do que nunca. Os políticos estão mais corruptos, roubando mais descaradamente.

Essa onda de manifestações pelo país não deixa vocês mais otimistas? O: Quem foi às manifestações entende a força e seus significados. Cansamos de ver o mundo inteiro se mobilizando, enquanto nós brasileiros aceitávamos tudo de cabeça baixa. Estávamos acostumados a sermos enganados e excluídos das decisões que regem a sociedade brasileira, e é por isso que a coisa foi tão longe. Os 20 centavos foram apenas o estopim para acordarmos de um grande pesadelo.


"Uma das coisas mais legais de São Paulo é que não tem praia. Faz a gente pegar outros tipos de onda"


Será que essa mudança não começaria justamente por São Paulo, a maior metrópole brasileira? G: Acho que sim. A cidade vai ficar insuportável e algo de novo pode surgir disso. O caos já está instalado. Aliás, foi por isso que resolvemos pintar: para abrir uma janela para fora dele.

Vocês vivem numa queda de braço com a prefeitura, que costuma apagar grafites de vocês dos muros da cidade. G: Cara, nem temos muito o que falar sobre isso. Chegamos a ir lá falar com eles na gestão do Kassab, mas continuaram apagando nossas coisas. Nosso recado já foi dado. Vamos continuar fazendo. Não vamos deixar de falar o que queremos falar. Isso é certo. Só não entendo como eles podem se preocupar com grafite com tantos outros problemas por aí. Eles vão lá e passam a tinta cinza, paga pela própria população.

Drogas. Usam? Defendem? Condenam? G: A gente adora dormir e sonhar. Nosso trabalho depende dos sonhos que temos, eles nos inspiram. Se você não está bem, não está no controle, não sonha. Por isso não usamos nada, apenas bebemos socialmente.

Quais são os planos para o futuro? G: Queremos experimentar muitas coisas ainda. Quem sabe fazer roupas. Já desenhamos tantas... Se você reparar, cada boneco nosso tem uma roupa diferente. Nunca repetimos nenhuma. Já somos estilistas, de certa forma. O: Esse universo nosso é tão real que pode virar filme, musical, peça de teatro, performance, música. Nossa única preocupação é fazer bem-feito e não passar por cima de ninguém. Somos muito caprichosos. Queremos fazer o melhor que podemos.


Encaixou

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As figuras bem-humoradas e hedonistas da galeria são obra do artista austríaco Peter Fendi (1796-1842). Nascido em Viena, Fendi ficou conhecido por suas pinturas em aquarela, nas quais retratou as mais diferentes posições sexuais – algo considerado ousado para um artista europeu do século 19. Uma amostra do seu trabalho pode ser vista nas imagens que ilustram as colunas da edição 224.

Nomes adequados e inadequados #224

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Nomes adequados

01 Baijayant Panda
FUNÇÃO: Parlamentar indiano que luta pelos direitos dos animais
COMPROVAÇÃO: http://tinyurl.com/kbqyuow

02 Daniel Humm
FUNÇÃO: Chef
COMPROVAÇÃO: http://tinyurl.com/k2lz5pl

03 Antonio Lélis Pinheiro
FUNÇÃO: Engenheiro florestal
COMPROVAÇÃO: http://tinyurl.com/przzdpz

Nomes inadequados

01 Teresa Urban
FUNÇÃO: Jornalista e ambientalista
COMPROVAÇÃO: http://tinyurl.com/o2smhyz

02 Milan
FUNÇÃO: Filho do zagueiro Piqué, do Barcelona
COMPROVAÇÃO: http://tinyurl.com/qd69htc

03 Jorge Carrasco
FUNÇÃO: Diretor do Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa
COMPROVAÇÃO: http://tinyurl.com/qzpnuj3

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Arquivo pessoal

A produtora executiva da Trip Adriana Verani com um ano. Essas são todas as fotos que ela tem de si com essa idade

A produtora executiva da Trip Adriana Verani com um ano. Essas são todas as fotos que ela tem de si com essa idade

Se você nasceu há mais de duas décadas, seus pais devem ter, com sorte, poucas dezenas de fotos suas quando bebê. Agora, se você virou mãe ou pai nos últimos cinco anos, provavelmente já acumulou milhares de fotos e vídeos de seu rebento no HD, no tablet, no celular. Talvez, tenha até um ultrassom em 3-D dele, compartilhado, claro, no Instagram.

Nunca se produziu tanto conteúdo digital. O lado bom dessa história é que menos plástico, menos papel e menos lixo estão sendo produzidos no mundo, o que aliviaria um pouco a conta com a natureza, certo? Nem tanto.

Guardar uma música em MP3 ou ouvi-la via streaming não é, necessariamente, mais ecológico que ter o vinil da mesma música. Tirar uma foto digital tampouco polui menos que um registro clicado com uma câmera analógica. “Quando você faz um streaming, está usando três máquinas: a sua, a que está transmitindo esses dados para você e a que está com o conteúdo armazenado. Baixar um filme e salvá-lo em um pen-drive, portanto, é muito melhor para o mundo do que assistir a ele no YouTube ou no NetFlix. E melhor ainda que baixar é comprar o DVD”, diz Luli Radfahrer, ph.D. em comunicação digital.

A vangloriada nuvem de informação, onde boa parte desses dados são armazenados, na verdade, não tem nada de aérea. Ela existe fisicamente e é alimentada por uma outra tecnologia, já centenária: a eletricidade. “O termo ‘nuvem’ foi criado por engenheiros para representar o momento em que há um encontro de muitos cabos e, então, para não desenhar fio por fio, desenharam logo uma nuvem”, conta Radfahrer. De acordo com um relatório feito pelo Greenpeace sobre o assunto (How clean is your cloud?), se a nuvem fosse um país, seria o quinto colocado na lista dos que mais consomem eletricidade.

Mas calma. Não precisa boicotar o botão compartilhar a partir de agora (embora um pouco de parcimônia e reflexão neste item sejam sempre bem-vindas). O grosso do tráfego global de dados não é de gente compartilhando o melhor vídeo da última semana, mas sim de megacorporações trocando muito mais terabytes do que nossa banda não tão larga assim ou nosso 3G capenga permitem.

“Está na mão dessas grandes empresas tornar suas nuvens mais limpas, alimentadas por energia menos sujas”, completa Radfahrer. O Google, por exemplo, alega que todo o carbono emitido em seus dantescos databases é neutralizado posteriormente. E diz ainda que investiu mais de US$1 bilhão em novas formas de energia renovável. Em tempo: apenas em 2012, o faturamento do site foi de... US$12 bilhões.

Arquivo pessoal

Flora, filha de Adriana, com 1 ano. Isto não é nem um centésimo das fotos que ela terá de si com essa idade

Flora, filha de Adriana, com 1 ano. Isto não é nem um centésimo das fotos que ela terá de si com essa idade


República de veteranos

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Arquivo pessoal

 

Os 70 anos de vida da professora aposentada espanhola Felisa Laíz cabem no modesto apartamento de 52 metros quadrados para o qual ela se mudou em abril. Não que ela tenha acumulado pouca coisa ou enfrentado revezes financeiros. Mas, sim, porque abriu mão do sobrado com o dobro do tamanho onde morava em Madri e se desfez de muito do que possuía para compartilhar a vida com os 61 companheiros da cooperativa de aposentados Trabensol.

Fundada há 13 anos por ela e por amigos no povoado de Torremocha, perto da capital espanhola, a comunidade é uma espécie de república para os “mais antigos”, como a professora gosta de definir. Cada morador tem direito a uma residência para até duas pessoas, com banheiro, sala e cozinha integrada, um dormitório e uma varanda. No mais, compartilham tudo – área de serviço, lazer e comida, servida em refeitório coletivo. “Não é luxuoso, mas é confortável”, descreve. “Temos jardins, banhos terapêuticos, além de atividades físicas e manuais, conduzidas por nós mesmos”, explica.

Se a ideia de uma comunidade de aposentados pode soar estranha, na prática, ela faz todo sentido. “Começamos a pensar sobre a velhice. Não queríamos que fosse como víamos por aí: ir para asilos ou ficar mudando de casa em casa. Gostamos da ideia de ficar juntos”, relembra Felisa.

Sem solidão

Nas primeiras reuniões, a ideia do Trabensol (sigla para trabalhadores em solidariedade) atraiu 120 interessados, o dobro dos que de fato se mudaram para lá. “Muitos acharam que não ia dar certo. Outros foram afetados pela crise econômica”, comenta a professora. A conta da construção de 6.700 metros quadrados fechou em 5 milhões de euros – 3 deles custeados por um fundo bancário e os outros 2, divididos pelos associados. Cada um contribuiu com 145 mil euros. “É caro. Mas ali estão nossas economias da vida toda”, explica. Além da contribuição inicial, cada morador paga de 850 (quarto individual) a 1.050 euros (duplo) mensais para arcar com os custos do coletivo.

A vida comunitária é um dos principais atrativos da Trabensol, explica a ex-bancária Pilar San Gregorio, 63 anos, há duas semanas no local. “Meu marido e eu sempre nos interessamos em viver de outra maneira – mais humana e menos individualista. Porque a sociedade é cada vez mais egoísta, cada vez nos isolamos mais em nossas próprias casas. Aqui não estamos sozinhos nunca.”

Vai lá www.trabensol.org

Arquivo pessoal

 

Bebendo menos

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Caio Palazzo

 

O fim dos anos 1960 viu nascer no Brasil a febre por automóveis esportivos que havia décadas já embalava o sonho da juventude nos Estados Unidos. Motores cada vez mais potentes e sedentos por combustível eram a palavra de ordem. Cenário que a General Motors soube explorar muito bem com o lançamento do esportivo Opala SS6, apresentado em 1970 com um potente – e beberrão – motor de seis cilindros, capaz de despejar 153 cavalos-vapor no asfalto – bem mais do que o concorrente direto Ford Maverick, que entregava apenas 135 cavalos-vapor de potência.

Caio Palazzo

 

Mas, como diz o ditado, alegria de pobre dura pouco. E os brasileiros, que mal começavam a viver a farra desses carrões, logo tiveram de pisar no freio. Ou melhor, o mundo inteiro teve que tirar o pé do acelerador depois que as nações árabes integrantes do cartel da Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) decidiram protestar contra o apoio americano a Israel na Guerra do Yom Kippur, elevando o preço do petróleo em mais de 300% naquele ano de 1973.

No Brasil, em pleno auge da crise, campanhas publicitárias de montadoras passaram a exibir frases como “Respeite os 80 km/h. Garanta o combustível de amanhã”. Como medida preventiva, o governo chegou a proibir a realização de corridas de automóveis em território nacional. Além disso, postos de gasolina passaram a funcionar em horários restritos, obrigando a população a apertar o cinto e a viver com menos. 

A crise mundial do petróleo, como ficaria conhecido o período, causaria feridas na economia global e faria toda a indústria automotiva repensar seus lançamentos. No caso da General Motors do Brasil, a marca decidiu efetuar um downgrade em sua linha esportiva SS, que em 1974 passou a contar com uma opção mais mansa, denominada SS4.

Sem dor na consciência

Apresentado pela publicidade como “o carro para quem busca desempenho com economia”, o Opala SS4 era empurrado por um motor de quatro cilindros, que consumia menos combustível que o SS6. Além de ainda hoje representar economia para acelerar sem dor na consciência, o Opalão com a sigla SS4 tem outra vantagem. “É um carro de valor histórico, um clássico cada vez mais raro e desejado, já que sobraram pouquíssimas unidades originais”, afirma o empresário e colecionador Roger Darienzo, proprietário do SS4 1974 pintado na tonalidade “superverde”. “Com o tempo, a maioria acabou mexida para ganhar mais potência ou teve o motor trocado pelo de seis cilindros”, explica.

O Opala SS4 1974 superverde visto de três ângulos diferentes

O Opala SS4 1974 superverde visto de três ângulos diferentes

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